Qual é o jogo qual é ele, em que um punhado de adolescentes é preso numa escola e forçado a participar numa carnificina, sob o comando de uma mascote torpe e traquina? Se responderam imediatamente Danganronpa, bem, não posso dizer que estão errados. Mas só merece os pontos extra de irreverência e estilo quem tiver respondido The Hundred Line -Last Defense Academy-, a recém-lançada aventura de Too Kyo Games.
Será esta sobreposição de
cenários uma coincidência? Nem por sombras: se elevarmos uma lupa sobre a equipa de
desenvolvedora deste jogo, traçamos as nucas ilustres dos desenvolvedores de
Danganronpa. Após essa descoberta, faz-se um clique na nossa mente: faz todo o
sentido encontrarmos esta paridade num cenário e premissa ímpares, e o regresso
do design de personagens icónico e carismático de Rui Komatsuzaki, das
músicas eletrizantes e memoráveis de Masafumi Takada, das personalidades exageradas e com uma mina de potencial para surpresas e humor de Kazutaka Kodaka
(que fazem o elenco de Ace Attorney parecer figurantes sóbrios de Nolan, e que são
complementadas por um trabalho vocal exemplar e pulsante em inglês que só peca por não abranger todos os diálogos), e até da jogabilidade de vida escolar, em que interagimos
com personagens e realizamos atividades em blocos de tempo limitados para
desbloquear skills e melhorar estatísticas, numa vertente de
jogabilidade similar a Persona.
Mas antes que baixem a guarda perante esta familiaridade, desenganem-se: no testamento que
Danganronpa redigiu com o seu suspiro final, a série mãe pode ter destinado o
ambiente escolar fechado e a jogabilidade de simulação de vida a Hundred Line,
mas foi Master Detective Archives: RAIN CODE quem herdou os homicídios
intrincadamente labirínticos para os quais a nossa mente salta logo que
pensamos em Danganronpa. Hundred Line tem o aspeto de um Danganronpa, o timbre de um Danganronpa, os maneirismos de um Danganronpa; porém, no lugar do clima de tensão e suspeita dos
jogos de matança que ocupava o centro da VN clássica, Hundred Line rompe com o passado ao introduzir-nos a um grupo de estudantes no mesmo
barco, unido não só pelas suas circunstâncias, mas também pelos seus objetivos.
Tanto o protagonista Takumi
Sumino como os restantes jovens recrutados viviam pacificamente no Tokyo
Residential Complex, até a cidade ser atacada por monstros bizarros e eles serem subitamente transportados para uma escola no meio do nada, cercada por chamas
sobrenaturais irrefreáveis. Uma vez lá, a mascote burlesca Sirei identifica-se
como o seu comandante, incumbindo-os de defender o complexo enigmático de
hordas de invasores durante 100 dias. O que está em causa? Nada mais, nada
menos, que “a salvação da humanidade!”
Apesar de se posicionar do lado
dos heróis, Sirei é extremamente sovina com as informações do conflito,
deixando-os inquietos com os mil e um mistérios que têm a braços: a importância
de defender a escola, as motivações dos monstros atacantes, o destino dos
residentes da sua cidade natal... Há um grande buffet de incógnitas para
agonizar e chorar por mais; uma riqueza tal de enigmas que Hundred Line
mantém-nos constantemente investidos, não só pelo desembaraço e audácia com que
subverte o cronograma de clichés Danganronpa que antecipávamos (zombeteando divertidamente e diretamente com quem jogou esses killing games), não só pela
promessa de trazermos a verdade à tona a cada revelação e reviravolta
estonteante (que às vezes se ramificam em novas fornadas de questões
inquietantes), mas também pelo impacto que esta guerra nebulosa e repentina
provoca no comportamento das personagens.
Mesmo quando a
cadência de revelações abranda, a história faz um bom trabalho a
desvendar e investir-nos na humanidade por trás desta congregação de arquétipos
exagerados, como esta equipa de desenvolvedores nunca o fizera no passado. É
substancial a diferença entre o seu tratamento num jogo em que funcionam como
peças descartáveis e red herrings num mistério de homicídios, para outro
em que são uma presença assídua e garantida por toda (ou uma boa parte) dos
eventos. O ritmo disciplinado da história garante aos 15 intervenientes ampla e
natural margem para florescerem; inclusivamente, vários dos arcos narrativos principais
surgem intrinsecamente ligados às motivações e vivências das personagens
individuais.
Esta valorização revigorada das personagens
legitima mais do que nunca a jogabilidade de vida escolar, ao gerar uma força
sinérgica entre as preocupações efetivas do enredo e as tentativas do jogador de
se aproximar dos colegas. Todavia, a Too Kyo Games perdeu uma
oportunidade de aprofundar os momentos de convívio íntimos que partilhamos com
eles, estendendo-os o suficiente para irem além de uma exploração flash das
suas idiossincrasias e aproveitando-os como rampas de lançamento para jornadas de crescimento
pessoal.
Talvez a simplicidade destes encontros seja uma manifestação de misericórdia para com os complecionistas, porque Hundred Line não nos dá oportunidade para fazer tudo – sublinhando o “management” em time management. Há que escolher se o nosso tempo é mais bem empregue a confraternizar com um estudante, a criar e oferecer presentes, a treinar, estudar, ou explorar os arredores da escola em busca de materiais, num tabuleiro reminiscente de Mario Party.
É estimulante rever o nosso alinhamento de prioridades quer estejamos no dia 9 ou 90, uma vez que estas decisões condicionam as habilidades que desbloqueamos e os atributos que melhoramos. Nos outros jogos da equipa, esta forma de progressão era irrisória por apenas aumentar a margem de erro nos seus minijogos (facílimos) de dedução mas, em Hundred Line, possuem a importância e pompa de serem a nossa grande forma de “level up” para…
...as batalhas de estratégia por
turnos! Sim, leram bem. Por mais que o jogo nos espicace com a sua quota parte
de mistérios, não faria sentido que os julgamentos climáticos de Danganronpa
fossem o palco da sua resolução. Por isso, no seu lugar, foram inseridas
batalhas de estratégias por turnos, em que enfrentamos diretamente os monstros agressores
para os impedirmos de destruírem as defesas da escola.
Para a sua primeira marcha de reconhecimento por um gênero desconhecido, o tiro ambicioso da Too Kyo Games não podia ter sido mais certeiro. Tal como num Fire Emblem ou XCOM, as nossas unidades movem-se e atacam numa grelha. Todas as personagens partilham os mesmos pontos de ação, o que significa que podemos controlar o mesmo soldado várias vezes num só turno; no entanto, após a sua primeira utilização, ele ficará fatigado e a sua mobilidade será drasticamente reduzida. Numa fase inicial, a gestão dos vossos pontos de ataque será simples; contudo, a sua complexidade evolui elegante e sorrateiramente à medida que são aumentadas as frentes de ataque e unidades no terreno, sem que haja um acréscimo nos nossos pontos de ação. Por isso, para maximizarem a vossa performance num turno, poderão priorizar os inimigos mais poderosos que, quando derrotados, vos concedem um ponto de ação extra, ou utilizar os ataques especiais Voltage, que não consomem pontos de ação mas dependem de uma barra de energia carregada pelos ataques normais, ou até cometer um assalto suicida que partilha o fulgor dos ataques especiais e ainda vos oferece energia para novos Voltage Attacks!
Eu aprecio imenso esta componente
inusitada do combate, em parte por encorajar o jogador a colocar-se
deliberadamente em desvantagem numérica, em parte porque o prejuízo não é
unicamente de força bruta. As unidades possuem estilos de movimentação e ataque
únicos e refrescantes, que destoam positivamente entre si e em relação às
comuns classes de RPG: por exemplo, uma personagem torna-se mais poderosa a
cada inimigo que derrota num mesmo turno, sendo perfeita para encadear ataques
entre oponentes progressivamente mais imponentes; em contrapartida, outra conduz
uma carrinha personalizada que aumenta o seu alcance e a permite agir várias
vezes num turno sem se cansar, mas apenas dispõe de um ataque pífio em área e de
opções de buff de colegas.
E nem falamos dos materiais
estratégicos (como barreiras e bombas) que podemos posicionar pelo mapa, ou dos
diferentes bosses e das condições especiais que impõem no terreno de
jogo, ou de como os acontecimentos da narrativa vão mudando a formação do nosso
pequeno exército! O combate de Hundred Line é extremamente rico e gratificante
de se explorar, mas as suas brilhantes nuances são introduzidas tão eximiamente
que só se aperceberão de toda esta evolução se tiverem de se sentar, escrever
uma análise do jogo e cofiar nervosamente a barba enquanto pensam em como raios
sintetizar este volumoso acervo de mecânicas.
Nesta altura do campeonato, não
adianta fazer fitas: estou rendido à mais recente empreitada da Too Kyo Games. No
entanto, e apesar de já ter concluído a minha estadia de 100 dias na Last
Defense Academy, sinto que seria desonesto e extemporâneo conferir-lhe uma
qualquer pontuação, ou ditar um veredito resoluto.
Na minha inspeção dos
desenvolvedores de Hundred Line, um outro nome fez soar campainhas mentais:
Kotaro Uchikoshi, um lendário argumentista que dispensa apresentações, mas que
terá uma à mesma. É ele o visionário por trás dos emblemáticos AI: The Somnium Files,
Ever 17, e 999: Nine Hours, Nine Persons, Nine Doors – jogos em que se
distinguiu ora pelas matérias de ficção científica sobre as quais se debruça,
ora pela sua atitude sui generis para com as estruturas dos videojogos e
pelo seu emaranhamento íntimo com a história que opta por contar. Passei os 100
dias de sobrolho franzido, procurando com paranoia o seu toque singular na
narrativa, mas todas as inquisições desconfiadas que me escapavam eram apenas
respondidas pelo eco numa sala suspeitosamente erma.
Foi só no final que o homem se
mostrou e, no meio do meu pasmo, percebi: The Hundred Line é um jogo Uchikoshi
enxertado num Danganronpa-like. Mais não quero revelar, mas o que vos posso adiantar é
que, apesar das dezenas de horas que dediquei à Last Defense Academy, ainda tenho
muito a remexer e ponderar nesta jornada de 100 dias antes de formar um juízo
derradeiro. Já discerni laivos de Never 7 e 999 nesta nova fase da experiência;
já vi as personagens a serem dissecadas sob uma nova lente. Preciso de encontrar
a última paragem deste crescendo de mistérios, de confirmar se recuperará a euforia
e incredulidade das retas terminais de Trigger Happy Havoc e RAIN CODE; mas
também preciso de saber se as mecânicas de combate não se desbotarão com o excesso
de uso. Kazutaka Kodaka e companhia já me conquistaram com o seu trabalho,
mas alimento a esperança de que os dedos mágicos de Uchikoshi o elevem de
uma experiência fenomenal a algo genuinamente especial. Porque, com Uchikoshi,
o descer dos créditos está muito longe de ser o descer do pano.
A estrada na minha frente estende-se até ao horizonte infinito; enquanto a percorro, entrego-vos com confiança esta proto-análise – um texto em tudo igual a uma análise tradicional (e talvez à análise final), mas sem a conclusão e possíveis adendas que não tenho confiança para tecer agora. Seja como for, não esperem pela pontuação para ingressarem nesta montanha-russa: embora ainda espere encontrar surpresas no caminho, o maior choque seria rescindir a minha recomendação sólida do projeto intrépido, ambicioso e colossal da Too Kyo Games. Uma obra espetacular que une génios do ofício para deliciar fãs de visual novels, Danganronpa e jogos de estratégia, numa escala sem precedentes.
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Steam e experienciada integralmente na Steam Deck, através de um código gentilmente cedido pela editora.
Autor da Análise: Tiago Sá

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