Entusiastas de Visual Novels (VNs), recuem comigo no tempo até 2000. Neste ano, não existe nada que se assemelhe aos Chaos;Head, Steins;Gate, 999: Nine Hours, Nine Persons, Nine Doors, AI: The Somnium Files e afins. Mas foi neste ano que se plantou a semente para o nascimento destes universos ficcionais fascinantes, com o lançamento de Never 7 - The End of Infinity pelas mãos da desenvolvedora KID. Uma re-edição bem-sucedida de Infinity cujos novos elementos sci-fi se viriam a repercutir tanto na linha de temas e desenvolvimento de personagens do universo Science Adventure da MAGES (que assimilou posteriormente uma porção dos desenvolvedores da KID), como nos conceitos e reviravoltas que viriam a definir Kotaro Uchikoshi (que se estreara como argumentista de jogos no ano anterior).
Até ao anúncio dos novos remasters de Never 7 e Ever 17, nem Never 7 estava disponível oficialmente fora da terra do Sol Nascente, nem eu sabia da existência destas obras - tanto que, ludibriado pela boxart e título deste dual-pack, quase comecei os jogos na ordem inversa de lançamento, um erro que vos advirto a não cometerem! Com apetite e curiosidade aguçados, devorei Never 7 e descobri neste lançamento um claro ponto de transição entre paradigmas de VNs. A origem deste tufão de novelas gráficas futurísticas e arrojadas está num modesto bater de asas de uma borboleta néon porque, apesar dos conceitos científicos e filosóficos explorados, Never 7 é impreterivelmente uma VN de romance, com tudo aquilo a que não queria ter direito.
Começando logo pela premissa, o estudante absentista Makoto Ishihara é obrigado a participar num retiro académico de 7 dias para transitar de ano, com o aparente propósito exclusivo de relaxar e confraternizar com as moças (e o rapaz) que o acompanham. Na pele deste protagonista bonzinho e genérico com backstory a beirar a insignificância, podemos enveredar por várias rotas narrativas que terminam (quase) sempre com o estabelecimento de romances com uma das personagens femininas - sendo a rota determinada pelas escolhas que tomamos em relação ao que fazer ou dizer em certas situações, naquela que é a única forma de interatividade de Never 7. Enquanto jogador, estou formatado para encarar as diferentes rotas de uma VN como peças de um puzzle ou como explorações heterogéneas da mesma base narrativa, e não tenho propensão para fantasiar com namoriscos com assortimentos de desenhos PNG. Consequentemente, foi-me fastidioso acompanhar este bamboleante catavento amoroso, para o qual pequenas variações de acontecimentos são suficientes para pintar uma jovem diferente como a sua Cleópatra e, pior ainda, para a dita jovem se lançar fervorosamente para os seus braços.
O que vale é que a história de Never 7 não se fica por esta sopinha de clichés românticos: ao longo da sua semana no paraíso, Makoto vai tendo premonições repentinas de eventos futuros bem específicos e, a cada uma que se revela acertada, o jovem fica mais desconcertado com o potencial significado do pesadelo sinistro que tivera no primeiro dia da viagem. Com desvios estratégicos da nossa realidade como este, Never 7 encontra formas de reenquadrar a estrutura e relação entre as rotas, estabelece pontos de ligação inauditos entre personagens que aparentavam ter sido reunidas pelo acaso, e alimenta uma série de reflexões entre os jovens, apoiadas nas vivências sobrenaturais do protagonista e em exemplos científicos e literários, que acabam por ser estendidas ao leitor. Como nas melhores VNs, dei por mim a matutar sobre este universo muito depois de ter terminado todas as suas rotas, especialmente pela natureza positiva e propositalmente dúbia dos "poderes" do protagonista: são várias as explicações apresentadas, mas nenhuma é conclusiva, tornando provocador tentar perceber qual delas (ou qual combinação delas) melhor se conforma aos eventos da história.
Algo que me enlevou em Never 7 foi a sua capacidade de fomentar estas reflexões sem perder de vista o seu foco slice of life. Os seus mistérios nunca dão lugar a grandes desígnios ou a vilões maquiavélicos e, mesmo nos momentos mais tensos da história, o drama é encarreirado pelas personagens e pelas suas motivações terra a terra. Inclusivamente nas intrigas amorosas, em que uma das raparigas se torna o centro das atenções, os restantes jovens mantêm papéis pivotais na narrativa, ora contribuindo para o crescimento de Makoto e da sua pretendente da semana ora sendo eles próprios alvos de evolução, e os momentos amenos de convívio entre todos nunca são colocados de lado. Ao misturar conceitos fictícios intrigantes com a serenidade e singeleza de um retiro entre jovens, Never 7 apresenta-se como uma história SciADV/Uchikoshi-lite, deslocada do permanente suspense e tensão das maiores obras deste gênero e perfeita para degustar entre outras leituras mais exigentes. É um aprazível período de férias não só para Makoto e companhia, mas também para o meu cérebro em irrefreável senescência.
Talvez por esta perspetiva, eu fiquei completamente enamorado com vários dos elementos audiovisuais da novela visual. Desde logo, a banda sonora de Takeshi Abo, como já é habitual, é extremamente memorável e sublinha de modo exemplar as emoções dominantes nos diferentes episódios da trama. Além disso, as voice lines com áudio comprimido e os expressivos visuais das personagens, em linha com animes "clássicos" e com energia redobrada pelas proporções e ângulos levemente desregrados das suas diferentes sprites, alimentam a ideia de que estou a ser transportado para um recanto nostálgico e atemporal. No entanto, custa-me elogiar o remaster por um ponto positivo nascido por serendipidade: a verdade é que, como um todo, esta versão do jogo aparenta ter sido criada em modo mão de vaca, evitando recriar qualquer asset substancial sempre que possível. Embora encontre charme nas gravações áudio originalmente comprimidas para caberem num disco da PS1, não posso dizer o mesmo das imagens de fundo desfocadas em modo TV, ou dos artefactos visuais no vídeo de abertura, ou da interface simplória (mas perfeitamente inteligível após a habituação inicial) do ecrã backlog (no qual podemos reler os diálogos mais recentes).
Assim, o que a MAGES foi forçosamente obrigada a criar do zero para este relançamento foi a localização para inglês, que é... tragável. Não terão dificuldades a acompanhar o desenrolar da história, até perante algumas raras frases bizarras. Porém, vários erros ortográficos e gramáticos vão surgindo pontualmente, e a tradução aparenta ser bastante prosaica e literal, por exemplo, na sua pendência peculiar para o abuso de reticências, módica exploração de expressões idiomáticas da língua e na sua tendência para explicar trocadilhos japoneses em vez de introduzir alternativas adaptadas em inglês. Teria sido preferível que certas explicações tivessem sido integradas no menu TIPS onde, na versão PSP do jogo, encontramos um glossário com descrições de variados conceitos deste mundo; lamentavelmente, a MAGES deixou esta porção de conteúdo de fora da remasterização.
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Conclusão
Ultrapassado o desprazer da dimensão romântica que domina todas as suas rotas, Never 7 - The End of Infinity apresenta-nos um intrigante enredo com temas estimulantes que se mantém no nosso cérebro mesmo após alcançarmos os créditos. Combinando alguns conceitos instigantes com um enquadramento mais sereno e impassível do que as obras que o seguiram, Never 7 possui um charme singular que o mantém cativante 20 anos mais tarde, apesar de estar notavelmente aquém das obras que o seguiram em escopo e memorabilidade. Todavia, esta remasterização carecia de uma localização para inglês mais primorosa, bem como de melhorias gráficas mais profundas e da inclusão de uma porção de conteúdo exclusiva da versão PSP.
- Implicações narrativas das premonições do protagonista...;
- ...Incluindo um convite à reflexão da sua génese, perante várias explicações positivamente dúbias;
- Exploração intrigante de conceitos científicos, como nas histórias futuras dos universos SciADV/de Uchikoshi...;
- ...Num contexto mais intimista, pacífico e, por isso, refrescante;
- Banda sonora excelente;
- Elementos audiovisuais nostálgicos;
- Componente romântica nauseante;
- Tradução demasiado literal, com erros/problemas frequentes;
- Imagens de fundo e cinemática de abertura não receberam a modernização de que careciam;
- Omissão do subsistema TIPS;
- Aquém do calibre narrativo das VNs futuras de Uchikoshi.
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela editora.
Autor da Análise: Tiago Sá

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