Análise | Ever 17 - The Out of Infinity

 

Ever 17 - The Out of Infinity está disponível tanto numa edição standalone como num conjunto com o seu predecessor, Never 7 – The End of Infinity. Podem encontrar nesta página a nossa análise do primeiro jogo.


Há umas semanas, recebi um código para análise do conjunto "Ever 17 - The Out of Infinity / Never 7 - The End of Infinity Double Pack". No e-mail que me desafiava a conhecer as duas primeiras visual novels (VNs) da saga Infinity, pude ler a sinopse de Ever 17, que precedia a de Never 7, e deitar os olhos sobre a arte promocional desta coleção:

Perante esta introdução aos jogos, quando chegou a hora de transferir e experimentar o conjunto, comecei por Ever 17. Erro de principiante: na realidade, Never 7 não só foi lançado primeiro, como faz sentido ser jogado primeiro (ainda que possam jogar Ever 17 sem jogar Never 7 e viceversa, uma vez que as histórias se debruçam sobre locais e personagens diferentes), algo que felizmente descobri rapidamente após dar umas voltas na Wikipedia.

Esta ordenação contranatura está longe de ser um equívoco: Ever 17 é marcadamente mais popular e mais sonante para o público-alvo do que o seu predecessor. Parte desta notoriedade explica-se por Ever 17 já ter sido lançado em inglês no passado, ao contrário de Never 7. Porém, a justificação cardinal reside na qualidade da visual novel, em que o argumentista Kotaro Uchikoshi canaliza a confiança redobrada em temáticas sci-fi que derivou do sucesso crítico do predecessor para criar uma história mais ambiciosa e recheada de reviravoltas inesquecíveis.

Enquanto Never 7 é primariamente uma visual novel de romance polvilhada com toques de mistério e ficção científica, Ever 17 assume o foco inverso, aproximando-se mais da ponderação entre linhas narrativas que viríamos a saborear nos Steins;Gate e Chaos;Head da MAGES (mas, curiosamente, ligeiramente afastada da dos jogos futuros de Uchikoshi). Nos seus primeiros momentos, a sequência promete um retiro idílico como o seu predecessor, desta vez no ostentoso parque subaquático LeMU. Porém, tudo dá para o torto quando um aparatoso acidente prende a nossa personagem jogável (Takeshi Kurunari) e um punhado de jovens no complexo. A 51 metros de profundidade, sem linhas de comunicação com o exterior e permanentemente ameaçados pela fustigante pressão subaquática, Takeshi e companhia têm apenas 170 horas para encontrar uma opção de fuga, enquanto nós nos perguntamos "O que causou o acidente? Terá sido mesmo um acidente? Afinal, o que é um acidente?".

Durante este período, acompanhamos estas personagens unidas pela tragédia à medida que confraternizam, lidam com as pequenas crises que vão estourando no complexo LeMU, e partilham os segredos do seu passado com a nossa personagem jogável. Porém, quer estejamos numa tensa situação de perigo ou num plácido pequeno-almoço, existe um oceano de pequenos detalhes e incongruências ora a avolumar os mistérios do enredo ora a deixar um ténue rasto das suas respostas, conferindo uma intriga e pertinência a todas as cenas que ultrapassa o apelo imediato dos seus acontecimentos - algo que felizmente é transversal à narrativa mesmo após o foco ser estreitado em torno da personagem feminina central de cada rota.

Tal como em Never 7, a rota pela qual enveredamos é determinada pelas escolhas que tomamos em relação ao que o protagonista fará ou dirá em certas ocasiões, dentro de um menu de opção múltipla; ao contrário de Never 7, os seus desenvolvimentos são consistentemente interessantes graças à relação orgânica dos traumas das heroínas com os mistérios de Ever 17, e os seus finais afastam-se da previsibilidade dos romances que tanto me atormentaram no predecessor. Apenas 2 anos separam Never 7 de Ever 17, mas nunca o adivinhariam pela evolução em engenho, ousadia e complexidade entre as visual novels.

Este salto pronunciado pode ser objetivado na robustez das questões basilares do enredo, nas explorações inesperadas dos elementos emblemáticos de Never 7, nos infindos degraus que traçam a nossa escalada até à verdade e, especialmente, nas estonteantes revelações. Sem me adentrar por spoilers, fiquei impressionado pelo modo como esta experiência, com interatividade quase nula, capitaliza o seu estatuto de videojogo na disposição das suas reviravoltas para me deixar absolutamente de queixo no chão. Uchikoshi deixou-me atónito como eu nunca mais estivera desde a última vez que joguei uma obra de, quem diria, Uchikoshi. Porém, paradoxalmente, esta passagem por um dos seus primeiros trabalhos desconjurou algum do fascínio que nutria pelo autor. As surpresas de Ever 17 possuem pontos manifestos de sobreposição com experiências que o autor viria a lançar pelos vinte anos que se seguiram e, quando o percebi, foi como se se tivessem erigido muralhas claras em torno de uma mente cujo génio outrora me parecera irrestrito. Injustamente, esta realização rouba algum do impacto de Ever 17, quando esta visual novel não só tem a primeira real exploração destas ideias como a executa com mais sucesso e elegância do que os seus sucessores “espirituais”.

Impacto esse que, mesmo sem este contexto, surge mitigado neste relançamento. O Ever 17 que o ocidente conheceu por duas décadas e a nova versão para plataformas modernas não são o mesmo jogo. Em 2011, o mercado japonês recebeu um remake desta experiência para a Xbox 360, com ambientes redesenhados, modelos de personagem 3D, uma banda sonora recriada com novos remixes, e um argumento extensivamente alterado - e foi este remake que serviu como base para a nova edição Steam, Nintendo Switch e PlayStation da obra.

O problema não está nas alterações audiovisuais. A apresentação da nova edição da VN concilia o melhor dos dois mundos ao colocar as sprites intemporais de personagem do jogo original nos ambientes recriados e mais futuristas do remake, numa combinação que funciona muito melhor do que se poderia imaginar. Continua a existir margem para melhorias, por exemplo, ao nível da parca nitidez das indicações textuais (na prática irrelevantes para a história) em alguns panos de fundo, ou da qualidade das raras cinemáticas a que assistimos, cuja evidente compressão resulta em fenómenos de banding sobejamente exuberantes no modo TV, e a MAGES podia ter sido escondida nos menus uma opção para jogar com os modelos 3D. No entanto, estes são aspetos menores da apresentação, o último dos quais levanto mais pela minha curiosidade de ver os avatares 3D em ação (e para efeitos de preservação) do que por eu os considerar uma alternativa minimamente competitiva às sprites 2D.

Muito menos está nos remixes da banda sonora. Os seus temas mais melancólicos, recriados com andamentos mais rápidos e instrumentação mais energética, podem ser menos arrebatadores do que os temas originais (num salto semelhante ao da banda sonora do jogo Steins;Gate para a do seu anime), mas não poem em xeque a fulgência das composições de Takeshi Abo e o seu contributo para a atmosfera do jogo. Aliás, pontualmente o jogo sai reforçado na paisagem sonora apesar deste handicap, graças a uma sonoplástica mais rica e visceral que me fez sentir na espinha determinados eventos.

Do mesmo modo, também não tenho bifes com a forma do novo argumento. A localização do texto para Xbox 360 para inglês, embora não seja a segunda vinda de Shakespeare, é substancialmente melhor do que a do remaster de Never 7: a quantidade de erros de ortografia e gramática é escassa, a pontuação empregue é mais natural, e o texto denota um esforço acrescido (mas não universal) de encontrar alternativas adequadas para as idiossincrasias japonesas na principal língua franca.

Portanto, e como talvez já tenham adivinhado antes de todos estes rodeios, o problema do remake para a Xbox 360 e, por extensão, da edição do jogo em epígrafe, é o conteúdo desse argumento revisto. As duas versões internacionais do jogo podem partilhar o mesmo título letra por letra, mas estão muito, muito longe de ser a mesma experiência. O Ever 17 moderno não é uma simples atualização ou extensão do seu homónimo clássico, mas sim uma reimaginação transformativa. Imensas cenas foram encurtadas ou removidas, uma volumosa fatia dos diálogos foi reescrita, a temática e conclusão de várias rotas foram drasticamente alteradas, e até a arquitetura do parque aquático foi deturpada com a remoção de áreas previamente fulcrais à história.

Pessoalmente, prefiro a languidez meticulosa do argumento original, uma vez que eu apreciava as suas introspeções e exposições científicas mais elaboradas e o espaço folgado em que o seu subtexto disciplinado de enigma podia singrar. Contudo, reconheço que a sua versão moderna é mais fácil de digerir. Em vários momentos da edição clássica, tínhamos de revistar diferentes divisões do complexo LeMU uma por uma, quando a história apenas era desenvolvida numa ou duas delas; na nova versão, estas procissões solenes não se repetem. Noutra ocasião, jogamos várias partidas de escondidas com os sobreviventes do parque aquático; na versão moderna, todos os seus acontecimentos relevantes são condensados numa só ronda. Todo o Ever 17 recebeu uma lipoaspiração, geralmente criteriosa na maioria das suas remoções (apesar de um punhado de omissões lamentáveis), que dá azo a um pacing mais focado e eletrizante de acompanhar.

No espaço libertado por esta depuração, diversos momentos narrativos inéditos foram introduzidos. A maior parte é centrada em ação e, para além de intensificar a tensão da história, resolve um dos seus maiores pontos de estranheza. No lançamento original, as personagens convivem jocosamente enquanto esperam passivamente que alguém as resgate e só poem a mão na massa para resolver pequenas crises internas, como se estivessem em absoluta e impávida negação sobre a gravidade do seu berbicacho; agora, Takeshi e companhia tomam uma atitude mais proativa, procurando ativamente opções de fuga. Noutras ocasiões, foram inseridas novas interações entre os membros do grupo que melhoram certas dinâmicas interpessoais, como a de Takeshi e do rapaz amnésico, e até complementam alguns arcos de personagens com culminações climáticas.

Estas adições proveitosas confluiriam em personagens mais relacionáveis, não fosse estarem acompanhadas de revisões dos diálogos a resvalar demasiado para… anime, à falta de melhor palavra. O guião clássico já possuía a sua quota-parte de clichés japoneses, mas com um nível de razoabilidade  que o remake atirou pela janela fora. Ainda que consiga ignorar os abrasivos mal-entendidos de cariz sexual, fico desapontado com as novas reinterpretações das personagens. Por exemplo, o otimismo de Takeshi foi amplificado ao ponto de soar a ingenuidade e a personalidade de Tsugumi, uma jovem fria de poucas palavras, foi aproximada de uma típica tsundere. Até a rota de outra personagem foi maioritariamente reinventada para nos colocar a encenar cenas genéricas de romcoms nipónicas! De certo modo, sinto-me a braços com um processo de sanitização em que tentaram encaixar as personagens à força nas fôrmas dos arquétipos japoneses, fazendo com que se lascassem as arestas salientes que as tinham consolidado na minha memória.

Se as alterações se ficassem por aqui, não me espantaria que muitos de vocês considerassem Ever 17 moderno como uma alternativa equivalente ou até superior à original, consoante as vossas sensibilidades literárias. Porém, ainda não falei do pecado capital deste guião atualizado: o foreshadowing.

Há uma preocupação legítima dos novos autores em resolver as pontas soltas da narrativa. No seu melhor, esta traduz-se em novas deixas sugestivas com subtileza e naturalidade, e no estabelecimento antecipado de vários dos dispositivos narrativos que antes caíam de paraquedas na Hora H, ambas funcionando como armas de Chekhov que beneficiam a autenticidade deste mundo virtual. O mesmo efeito positivo é elicitado pela remoção de red herrings estapafúrdios e desonestos, e pela explicação de determinados plotholes.

Porém, esta preocupação prova ser patológica quando as explicações vão longe demais. O novo epílogo é emblemático desse problema: uma hora extra de conteúdo foi adicionada para, numa primeira fase, prestar esclarecimentos que variam entre o extremamente pertinente e o desnecessário, e, nas restantes porções, enfraquecer o impacto dos finais do jogo. Pouco é deixado à imaginação do leitor; pouco é confiado na capacidade de interpretação do leitor. Dessa insegurança, brota uma tempestade de foreshadowing agressivo: palavras-chave que descobríamos após várias horas de jogo são agora proferidas nos minutos de abertura. Frases aparentemente inócuas, mas que escondem um mundo de significado, passaram a ser repetidas e sublinhadas e ruminadas e remoídas. 

Quando esta descrença no leitor atinge o zénite da sua obsessão, os indícios tornam-se flagrantes ao ponto de serem proto-revelações informais. O Ever 17 clássico deixou-me pasmo com as suas reviravoltas mirabolantes; o Ever 17 moderno chocou-me ainda mais por as revelar, sem qualquer cerimónia, várias horas antes da sua exposição efetiva. Não acredito que a MAGES deitou por terra o grande trunfo do original, e não consigo perceber porque o fez. Até fico com ansiedade só de pensar que há por aí jogadores que não seguem a ordem das rotas recomendada e, por causa disso, anteciparão ainda mais esta revelação precoce, arruinando assim não só a montanha-russa do fim verdadeiro, mas também metade da experiência completa.

Por isso, na hora do veredito, é com muita relutância que vos recomendo Ever 17. Eu quero que conheçam esta VN genial, que continua a reservar-vos uma história espetacular em detrimento das suas piores mudanças. Porém, eu sei que, com este relançamento, não sentirão uma estupefação tão profunda como a minha. Num mundo ideal, a MAGES teria criado um híbrido dos dois Ever 17, procurando o equilíbrio perfeito entre os dois guiões para nos entregar a sua versão definitiva. Ou, alternativamente, teria lançado as duas versões do jogo nas plataformas modernas. Assim, os jogadores poderiam conhecer primeiro o argumento clássico e sentir o impacto total das suas mirabolantes surpresas, e posteriormente revisitar a edição moderna, desfrutando dos novos esclarecimentos e acontecimentos numa experiência mais concisa. Foi o que eu fiz e, por mais que tenha condicionado um atraso considerável na escrita da análise, eu dou graças por esta decisão. 




Conclusão

Queria poder recomendar-vos Ever 17 - The Out of Infinity com todo o meu coração. A sua história é excelente e magnetizante, as suas fascinantes revelações são tão arrojadas hoje como há vinte anos, e a sua apresentação e acessibilidade estão melhores do que nunca. Porém, só o posso fazer com um gigante asterisco: por todas as suas adições positivas, a edição moderna que nos chega possui uma dose nauseante de foreshadowing, que atenua o impacto das suas maiores reviravoltas. Ever 17 não vive e morre pelas suas surpresas, mas o seu brilho não é tão esplendoroso sem elas.

 

O melhor
  • Premissa intrigante e notavelmente mais evoluída face a Never 7;
  • Mistérios centrais intrincados e desenvolvidos num crescendo riquíssimo de detalhes e pequenas incongruências...
  • ...Concluídas com chave de ouro em respostas estonteantes e satisfatórias;
  • Aproveitamento estelar da sua condição de "videojogo" na apresentação das suas melhores surpresas;
  • Banda sonora excelente (embora inferior à original);
  • Combinação ótima do grafismo das duas versões do título;
  • Tradução competente.
O pior
  • Foreshadowing exagerado que prejudica severamente as revelações da história;
  • Personagens menos singulares em relação ao argumento original.

Nota do GameForces: 8.0/10


Título: Ever 17 - The Out of Infinity;
Desenvolvedora: MAGES, com base no trabalho de KID;
Editora: Spike Chunsoft;
Ano: 2002-2025.

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela editora.

Autor da Análise: Tiago Sá

Análise | Ever 17 - The Out of Infinity Análise | Ever 17 - The Out of Infinity Reviewed by Tiago Sá on março 14, 2025 Rating: 5

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