Até o anúncio de Indiana Jones and the Great Circle me motivar a maratonar os seus filmes (bons), o universo de Spielberg e Lucas existia na minha mente como uma salganhada de momentos desconexos. À semelhança da minha experiência com os Sozinho em Casa, eu apenas capturara cenas soltas dos filmes na minha infância, naqueles breves trances em redor da TV que eram celeremente interrompidos quando eu era invocado para ajudar nas rabanadas ou quando um primo canalizava a minha atenção para um qualquer brinquedo ou jogo. Se os segmentos que vira já tinham afirmado o arqueólogo como uma figura inesquecível do meu imaginário, só agora posso apreciar devidamente a magnificência das suas peripécias. Mas a qualidade dos filmes não é o ponto.
O ponto é que todos nós temos uma
ideia do que Indiana Jones é – desde o cinéfilo devoto à vizinha que mal liga a
TV. O nome é dotado de uma retumbância que não se limita ao chicote, à fedora, ao
rosto de Harrison Ford, mas estende-se à intrepidez e extravagância das suas
sequências de ação, à química entre o pragmático Jones e a sua inevitável parceira
arguta, ao renhido despique com as forças fascistas, ao sentimento de descoberta patente na exploração de ruínas antigas e místicas
– tanto tidas como uma história coesa ou como um universo de pequenos episódios. Simplesmente
inserir o jogador na pele de um Harrison Ford virtual e comandá-lo a disparar o
chicote para tudo quanto é lado numa qualquer sandbox ou montanha-russa
linear é insuficiente para ir ao encontro de uma genuína aventura Jones; uma
transposição para o plano dos videojogos tem perentoriamente de capturar à
letra as sensações evocadas pelas diversas facetas de Indiana Jones e fazê-las convergir numa jogabilidade
e narrativa global igualmente satisfatórias.
Aquele que era o grande bico-de-obra de The Great Circle cultivou a sua maior façanha: o novo jogo da MachineGames exala distintamente Indiana Jones por todos os seus poros. A direção visual é realista o suficiente para pintar cenários históricos e personagens detalhados e convincentes, conciliada com animações vívidas e críveis nas cinemáticas. De marcadamente laudável, este trabalho na apresentação torna-se impressionante pelo seu nível de otimização: mesmo com ray-tracing ativado forçosamente, o jogo comportou-se respeitavelmente na minha RTX 2070 (associada a um i7 de 9ª geração) a 1080p 21:9, e é especialmente surpreendente na Xbox Series X, segurando-se a 60FPS quase constantes em resoluções próximas de 4K (as duas plataformas entre as quais saltitei constantemente, graças à sincronização gratuita do savegame entre Steam e Xbox por Xbox Cloud; é uma nova funcionalidade bendita que espero ver em mais jogos!).
A ilusão poderia ruir assim que
as personagens abrissem a boca, mas The Great Circle conta com desempenhos exemplares
de todos os atores envolvidos emparelhados a um harmonioso lip sync. Incontornavelmente,
a performance mais estonteante é a de Troy Baker no papel do titular
arqueólogo, que adota tão fielmente o timbre e subtilezas da personagem que a
sua voz se tornou indistinguível da do jovem Harrison Ford – ao ponto de eu
duvidar que o próprio ator, agora nos seus oitentas, fosse capaz de proporcionar
um trabalho melhor.
Esta requintada componente técnica dá força à narrativa e argumento do jogo, também eles em linha com as nossas expectativas para o universo e para as personalidades assertivas que o habitam. Temos em mãos um novo grande mistério à la Indiana Jones, o Grande Círculo, que sugere um significado por trás do alinhamento de vários locais de interesse arqueológico emblemáticos numa circunferência perfeita, proporcionando uma trama desenvolvida com intriga e encerrada climaticamente com chave de ouro. Pelo caminho, embarcamos numa odisseia por diversas localizações exóticas, desde as paredes sigilosas do Vaticano aos picos áridos das pirâmides de Giza, em que todas as listas de arquétipos de personagens foram preenchidas, com natural destaque para o grande vilão, tão maquiavélico quanto carismático, e para a nossa obrigatória parceira, e a sua facunda dinâmica will-they-won’t-they com o protagonista.
Quando finalmente chegamos a uma cutscene, temos a oportunidade de apreciar todos estes elementos numa bela sincronia, com escrita saída dos filmes de Lucas, uma cadência disciplinada e ângulos de câmara cinemáticos. E, melhor ainda, nas sequências lineares de ação, recheadas de manobras estrambólicas, acontecimentos histriónicos, notas humorísticas, temas musicais ora adaptados ora inspirados pelas composições de John Williams, e sons de contacto exagerados (até ouvi um Wilhelm scream a certo momento, e podem crer que sorri de orelha a orelha). Nada está a mais, nada está a menos; se este guião, com todos os maneirismos e detalhes, fosse utilizado como a base para uma longa-metragem, esta discretamente e resolutamente posicionar-se-ia lado a lado com as melhores produções da personagem. Ainda assim, The Great Circle não seria tão arrebatador se fosse espremido num filme de 90 minutos: sem o formato de videojogo, a aventura não disporia de uma margem tão confortável para os seus mistérios e personagens respirarem e singrarem, e perderíamos a oportunidade de vivenciar esta epopeia frenética com este nível de envolvência direta,
Houve, todavia, um compromisso entre
a experiência Indiana Jones e o formato virtual, ao nível da jogabilidade. A
vista em primeira pessoa e as opções de combate (corpo a corpo e à distância) ser-vos-ão
imediatamente familiares se já tiverem visto qualquer jogo da longa história da
editora. Não fosse pelo chicote, usado para desafios de platforming/puzzles
e para atordoar/desarmar inimigos, Indiana Jones seria sobreponível ao exército de Popeyes que o precederam como protagonistas Bethesda. Este meio-termo não é
necessariamente negativo, refletindo a opção segura de aproveitar uma fórmula
testada numa realidade congruente com outros mundos prévios da editora (embora se sinta a falta de aprofundamento mecânico com o progresso); não obstante, desenredo na
perspetiva em primeira pessoa uma opção tomada por hábito e não por inspiração.
Por um lado, sendo Jones um ícone
do grande ecrã, este ponto de vista rouba-nos uma experiência apropriadamente
ampla e cinemática (e especialmente do espetáculo que seria ver um Harrison Ford
de cócoras a passear com um letal piaçaba); por outro, entra em conflito com
certas ações do jogo, nomeadamente quando usamos o chicote para movimentação, durante as quais o jogo relutantemente assume uma perspetiva em terceira pessoa. Não
menos importante, enquanto jogador acometido por enjoo do movimento em jogos first-person,
considero a inexistência de uma câmara em terceira pessoa como um obstáculo à
acessibilidade. Apenas precisei imperiosamente de largar o jogo após sessões
relativamente longas, mas imagino que jogadores com um posicionamento mais infeliz
no espetro da doença encontrem aqui uma barreira severa à entrada.
Excetuando esta dissonância identitária na câmara, a jogabilidade é perfeitamente adequada; até porque a nossa experiência é menos moldada pelas ações base de Indiana e mais pelo ambiente que ele percorre. A estrutura de Indiana Jones desenha-se por áreas abertas sequenciais, cada uma mais expansiva do que a anterior (e intercaladas com os segmentos lineares explosivos supramencionados). Nada vos impede de seguir os objetivos principais e os marcadores no mapa como um buldogue, e ter uma experiência concisa e centrada na história. Porém, se o fizerem, deitarão a perder muito do rico conteúdo extra de The Great Circle.
Deixem-se seduzir pelos pequenos mundos da aventura, e facilmente triplicarão ou quadruplicarão o vosso tempo de jogo. Estas áreas são grosseiramente análogas a metroidvanias, com a sua avalanche de segredos e de salas trancadas, à espera que descubramos uma nova chave, disfarce, ou truque que os desvendem. Na minha passagem pelo Vaticano, dei mais voltas ao complexo do que um gato esfomeado dá ao seu saco de comida, e não o fiz exclusivamente pelas recompensas em si!
Conhecer os registos escritos e artefactos do jogo, enriquecidos pelo enquadramento cronológico do enredo e, ocasionalmente, descobrir catacumbas secretas opcionais, com tipos de puzzles e armadilhas próprios e cinemáticas caprichadas que as equiparam às excelentes dungeons principais, foi de facto consistentemente estimulante; e a mera progressão imediata, seja vencendo uma partida de Mak Yek, descriptografando comunicações alemãs ou simplesmente percorrendo uma maquete virtual do Vaticano, tem um fundo instrutivo subjacente que dota este mundo digital de relevância e apelo, desenvolvendo o meu conhecimento deste período histórico ou, no mínimo, aguçando a minha curiosidade pelo mesmo (as liberdades criativas não são poucas!). No entanto, eu era também movido pelo fervor nato de escancarar todas as portas de um complexo, espremer todo o sumo das suas missões opcionais, e deixar o local completamente despido pelas mãos entusiásticas do meu ímpeto explorador, o mesmo que me instiga a terminar a 100% os platformers que me passam pelas mãos e que só eclode quando a diversão justifica este investimento extra.
Noutros momentos, travava a fundo nas missões e detinha-me a esticar,
torcer e esmagar campos de fascistas entre os meus dedos, sem nenhum objetivo para além do gáudio imediato. Há um certo magnetismo no combate de Indiana Jones,
assente primariamente em mecânicas costumárias de stealth, mas
complementado pelo sistema de armas improvisadas, que nos força a trocar entre frigideiras
oleosas, guitarras e marretas mais regularmente do que armas enferrujadas em
The Legend of Zelda: Breath of the Wild, e por stealth kills espalhafatosas, que concebem uma punchline cómica em cada soldado derrotado. Nunca me
cansei de fazer os soldados de uma área restrita caírem como peças de dominó e,
quando as coisas davam para o torto, tentar salvar a emboscada falhada na base
do soco, parry e movimentação estratégica.
Não imagino que esta atividade se
tivesse mantido chamativa por tanto tempo se não fosse a inteligência
artificial dos oponentes, inquestionavelmente um marco da Bethesda… para melhor
ou para pior. Eu escolho “para melhor”: seja idiótica ou não, a consistência do
comportamento dos fascistas torna-os o alvo perfeito para descarregarmos todas
as formas de bullying que consigamos imaginar, num exercício maquiavélico
que deixaria Belzebu (ou Deus?) orgulhoso! Naturalmente, um excesso de consistência poderia conduzir a tédio mas, oportunamente, há pontualmente alguma falha na Matrix a virar
tudo de pantanas – outro grande marco da Bethesda.
Refiro-me aos bugs, aos glitches,
àqueles momentos que para muitos são a maior praga dos Elder Scrolls e
Fallout. Porém, para mim, os ocasionais fraquejos da AI que existem em todos os
jogos da editora são um ímpar espetáculo humorístico do melhor calibre.
Quando assisto a conteúdo de humor sozinho, dificilmente uma piada vai além de me arrancar umas fungadelas do nariz; no entanto, enquanto assisto aos vídeos de Elder Scrolls do Bacon, rio-me compulsivamente
como uma criança que descobriu o seu primeiro palavrão. Normalmente, sinto-me à vontade
para desvalorizar estes momentos em prol da imersão, e interiorizar unicamente o seu
potencial lúdico; estranhamente, em Indiana Jones, eles contribuíram
positivamente para a minha experiência. Estes acontecimentos peculiares, tão imprevisíveis
quanto engraçados, vêm substituir a dimensão slapstick de Indiana Jones
nos filmes, que de outra forma só possuíriam fator novidade em The Great Circle durante as cinemáticas
e segmentos coreografados.
Por exemplo, num dado momento, a minha
parceira não parou de atirar vasos e mandar bocas contra um gigante pugilista… mesmo
após o coitado já estar estatelado no chão. Pode não ter sido um comportamento
planeado, mas eu consigo imaginá-la a agir dessa exata forma no calor do momento.
Visionado ou não, o momento foi gravado na minha memória (e na da minha Xbox),
tal como tantos outros que, igualmente incidentais, aprofundaram a singularidade
e humanidade da minha jornada individual.
Infelizmente, este forrobodó acaba
quando chegamos às inconsistências que foram efetivamente previstas pelos desenvolvedores.
A dissonância ludonarrativa é um obstáculo severo à minha imersão, e The Great
Circle é particularmente culpado desse flagelo. Jogos como Uncharted podem
construir uma muralha de corpos numa sequência e ignorá-la olimpicamente em
seguida; Indiana Jones and The Great Circle, com as suas áreas abertas em que
permanecemos horas a fio, não se deveria dar a esse luxo. É bizarro, após incapacitarmos
meio-campo de nazis e sermos perseguidos pelo resto da força militar, podermo-nos
esconder a petiscar uma sandes durante 20 segundos e regressar ao mesmo local,
como se nada se passasse, envergando exatamente os mesmos trajes. Ou roubarmos constantemente
documentos confidenciais e comprometedores de cofres seguros e as maiores forças
de autoridade antagonísticas, plenamente cientes da nossa presença e verdadeira
identidade, nos permitam continuar a brincar aos detetives sem qualquer
intercedência. Ou que os fascistas que abrem calorosamente as portas a um Indiana disfarçado sejam os mesmos que, ao ouvir uma sirene de
emergência geral, sabem imediatamente contra quem disparar. Nada do que
descrevo é novidade nos videojogos mas, talvez por falta de condicionamento, estas incongruências espinhosas não me descem do esófago.
Conclusão
Indiana Jones and The Great Circle parece um volume perdido das aventuras do icónico arqueólogo, resgatando todas as engrenagens que definem uma aventura Jones e conciliando-as eximiamente para construir uma legítima sequência dos seus melhores filmes, e não apenas uma imitação barata. Em adição à notável reverência pelo material de base patente no guião e nas componentes técnicas, a MachineGames entrega-nos uma pletória de fascinantes áreas abertas, apaixonantes de descobrir quer pela sua engenhosa configuração e distribuição de segredos, quer pelo subtexto histórico riquíssimo ubíquo a todas as nossas descobertas. A missão de adaptar Indiana Jones para os videojogos não era fácil, mas a MachineGames esteve à altura do recado.
O melhor
- Uma verdadeira narrativa, argumento e experiência Indiana Jones;
- Grafismo detalhado e convincente, banda sonora nostálgica e trabalhos de vozes exemplares;
- Alternância entre áreas abertas, recheadas de puzzles e segredos, com segmentos lineares empolgantes;
- Otimização exímia, tanto na consola como no PC;
- Sincronização de dados de jogo entre Xbox e Steam.
O pior
- Câmara com crise de identidade, cujo foco em primeira pessoa poderá alienar jogadores;
- Dissonância ludonarrativa.
Nota do GameForces: 9.0/10
Desenvolvedora: MachineGames;
Ano: 2024.
Nota: Esta análise foi realizada com base nas versões digitais do jogo para a Steam, através de um código gentilmente cedido pela editora, e da Xbox Series X, através de uma subscrição Xbox Game Pass adquirida pelo redator, jogadas em alternância.
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