Análise | Shiren the Wanderer: The Mystery Dungeon of Serpentcoil Island - É Um Roguelike RPG, Ai Se É
O grande mal do GameForces ter poucos redactores PC gaming é que, de vez em quando, um ferreiro é obrigado em trabalhar em pão. Hoje, o ferreiro sou eu, e o pão é Shiren the Wanderer: The Mystery Dungeon of Serpentcoil Island. Um... Credo, nem consigo dizê-lo... um roguelike.
Se leram a minha análise de Splatoon 3 Side Order ou o meu texto a explicar porque é que abomino roguelikes, poderão já ter notado que eu, bem, abomino roguelikes. Nada contra quem gosta mas, quando um jogo me convida a abordar incessantemente o mesmo tipo de desafios, criados proceduralmente sem calor humano, e onde o meu sucesso é largamente ditado por elementos RNG, sinto-me um egípcio prestes a descobrir a 11ª praga irada de Deus.
Ao mesmo tempo, não tenciono atravessar para o outro lado da rua sempre que um roguelike se aprochega, nem coibir-me de pronunciar a minha crítica sobre ele. Quando uma franchise do peito, como Splatoon ou God of War, se converte a este estilo de jogo, posso expor a minha perspetiva como a visão válida e pertinente de um veterano da série. Por outro lado, imensos roguelikes fogem à pedra dos Mandamentos da Lei do Gênero, injetando as suas particularidades na estrutura da campanha e potencialmente espalhando o apelo destes jogos a novos públicos. A vida dá voltas, quem sabe se não haverá um roguelike revolucionário que finalmente faz todas as peças encaixarem e crie em mim um novo fã?
Se bem que Shiren the Wanderer é um roguelike das unhas dos pés à ponta dos
cabelos. E a série sempre assim foi. E eu não tenho qualquer histórico com a
franchise, não sou a pessoa certa para vos informar que este é o sexto jogo da
série que combina RPGs por turnos com roguelikes e a sua primeira aventura
totalmente em 3D (ou não seria sem a preciosa ajuda do Google e dos
comunicados de imprensa). E se a vida deu alguma volta, foi de 360 graus, porque
continuo no mesmo ponto de partida – só com algumas tonturas e cefaleias a
mais.
Ai. Vão ter de me dar um desconto se querem que leve este texto a bom porto. Excepcionalmente, não darei um veredito ou pontuação numérica a Mystery Dungeon of Serpentcoil Island, e peço-vos especial sentido crítico na leitura desta análise: mais do que em qualquer outro texto, é provável que o que me frustra em Serpentcoil Island seja o motivo pelo qual o adorarão.
The Mystery Dungeon of Serpentcoil Island arranca com uma visão de uma rapariga misteriosa refém de um monstro imponente, projetada a Shiren e ao seu companheiro Koppa. O duo heróico desloca-se a Serpentcoil Island para a resgatar e, rapidamente percorre a dungeon da ilha e alcança o covil do vilão. Porém, Shiren sofreu o pior castigo imaginável: teve o seu controlo cedido a mim, o jogador, e eu, sem perceber patavina das mecânicas, fiz o herói perecer humilhantemente em tempo recorde. Tal como os restantes aventureiros caídos na masmorra, Shiren é transportado para a vila mais próxima sem o seu equipamento e sem as suas memórias, vendo-se obrigado a repetir a missão de resgate do zero até conseguir superar todos os pisos da ilha de uma só vez.
Esta rota insular leva-nos por praias, montanhas, vulcões e florestas, com mapas gerados
proceduralmente e espécies de inimigos progressivamente mais desafiantes de
enfrentar, todas com um comportamento distintivo. A jogabilidade evoca-me Crypt of the NecroDancer, mas sem a componente de ritmo: Shiren move-se de quadrado em quadrado numa grelha e, quando nos
movemos, ou utilizamos um item, ou atacamos, os nossos inimigos agem em
simultâneo. Pelos diferentes pisos, encontramos armas, escudos e uma imensidão
de itens com diferentes efeitos, desde regenerar pontos de vida a infligir
efeitos de estado (Sleep, Confusion, etc.) nos inimigos.
Quando inevitavelmente perecemos,
a única forma de progressão que levamos de uma tentativa para a seguinte é
conhecimento. Até podem deixar algum equipamento em armazéns espalhados por
Serpentcoil Island para o utilizarem numa run sucedânea, mas esse item
desaparecerá assim que o recolherem e irremediavelmente se espetarem novamente
contra o ecrã de Game Over. Uma vez que Shiren the Wanderer é um RPG por
turnos, a competência que limarão partida a partida não é a destreza de dedos,
mas sim o delineamento de estratégias. Perante a ideia de um RPG roguelike, esperava
encontrar um estímulo a planeamento fora da caixa a cada erro fatal cometido;
uma experiência capaz de induzir delírios de genialidade e grandeza em bestas
quadradas como eu. Porém, a aprendizagem que me abriu as portas aos créditos
passa por duas facetas em nada apoteóticas.
Uma boa porção das runs
é desperdiçada a aprender os sistemas e elementos de jogabilidade de
Shiren the Wanderer. Não é como se o jogo nos deixasse desamparados em
Serpentcoil Island; dispomos de tutoriais suficientes para entendermos os seus
princípios mecânicos, mas estes apenas roçam a ponta do icebergue da
profundidade da jogabilidade. É nas várias surpresas subsequentes que realmente nos familiarizamos com a gama de melhorias de armas, efeitos de itens e
equipamentos, armadilhas e condições, em episódios ora inócuos ora impiedosamente fatais. Não se espantarão se eu vos disser que estas descobertas são mais
frequentes numa fase inicial, mas estas são uma constante até ao fim da
missão de resgate. Eu já conhecia bem os pisos mais tardios quando equipei um
amuleto que me permitia nadar, entrei confiantemente na água e o meu inventário tornou-se num
ensopado de pergaminhos de feitiços inutilizados. E foi pouco depois que eu
quis usar um pergaminho mágico para transformar um item dentro de um pote num alimento,
e o meu queixo caiu ao chão ao ver que o pote e TODOS os itens nele armazenados
foram com os porcos.
São momentos… preciosos como estes que me instigam a trancar a Steam Deck a sete chaves e a sete pés fugir. Se o dever inviolável e sagrado de analisar o título me protegeu desta tentação, o mundo de jogo funcionou um escape para o meu instinto de fuga. Porque a segunda dimensão da aprendizagem em Shiren é a formulação de um modus operandi seguro e, para surpresa de ninguém, a segurança depende de cobardia. Não há nada mais enfurecedor do que morrer porque Shiren dá dois ou três misses consecutivos de ataques, ou porque caímos em armadilhas invisíveis, ou porque o RNG nos dá spawn numa sala com um festim de inimigos.
Para todos os potenciais
desfechos fatais, há uma solução clara, direta, imbatível e muito, muito
monótona. Há que atrair os monstros para um ponto seguro e derrotá-los um por
um para subir de nível, regenerar vida sempre que cai abaixo dos 50%, fazer o menor
percurso possível pela dungeon inteira em busca de itens e da saída para o piso
seguinte, e usar um pergaminho de feitiço em todo e qualquer aperto (até porque
o limite de inventário de Shiren é demasiado pequeno para que não aproveitemos
todas as oportunidades para o esvaziar). Quando qualquer faísca de originalidade me faz fugir da previsibilidade do guião, normalmente meto a pata na poça; parece que, onde outros jogos teriam risco-recompensa, Shiren the Wanderer tem só risco. Com
a ameaça de permadeath a pairar sobre as nossas cabeças, The Mystery Dungeon of Serpentcoil Island impõe um ritmo robótico, em que nenhum toque de
experimentação sai impune.
O erro foi meu: nunca deveria ter esperado um genuíno desafio
de estratégia em mundos dominados por RNG. A geração procedural de mundos, privada
do brilhantismo humano, é incapaz de explorar os padrões de movimento dos
inimigos ou de Shiren para nos proporcionar arduidades estimulantes e
memoráveis. A seleção de itens e equipamento distribuídos pelos pisos é posicionada sem critério e em demasiada abundância para incentivar uma sapiente gestão de
recursos. Por outro lado, as armas e escudos que encontramos nos primeiros
mapas são importantíssimos para o nosso sucesso a longo prazo (encontrar uma boa Sacred Weapon tardiamente é uma possibilidade, não uma certeza), ao ponto de ser
preferível desistir precocemente de uma run se o equipamento não nos
agradar – encorajando uma forma de savescumming, num jogo em que mal
existem saves!
Ao mesmo tempo, sinto-me mauzinho
por atacar Shiren the Wanderer. O jogo tem um charme especial na sua
apresentação e na sua história simples mas aconchegante, com personagens que se desenvolvem
gradualmente ao longo das nossas diferentes runs (por vezes
abrindo-nos portas a percursos alternativos por novas zonas da ilha). As funcionalidades extra são engenhosas e pertinentes, desde um modo de treino muito flexível a um sistema de resgate que permite que outros jogadores online (ou nós mesmos) nos dêem uma segunda oportunidade de continuar uma run falhada. E não posso
dizer que detestei a experiência; foi um ótimo entretenimento de dedos para
acompanhar podcasts e séries, perfeito para um mês em
que genuinamente precisei de repousar o cérebro. As suas frustrações não
arruinaram o seu valor de entretenimento; apenas reforçaram o valor do meu confiável
guião rígido de ações… e o meu continuado desinteresse no género.
Um jogador com sensibilidades diferentes poderá apreciar o RNG e armadilhas como elementos desafiadores da sua capacidade de improvisação, poderá valorizar a profundidade dos inimigos, mecânicas e itens como potenciador de maior replay value, poderá gostar do processo de descoberta da estratégia ideal por o fazer sentir um mestre deste sistema de jogabilidade. Um jogador que não eu. Sou um peixe fora de água, numa galáxia à parte da do público alvo. Não sou portador de nenhuma opinião que não a minha: a de alguém que sente a mostarda no nariz quando ouve falar em roguelikes. Se alguma coisa, o facto de quase todos os meus atritos com The Mystery Dungeon of Serpentcoil Island serem os mesmos que já apontei a tantos outros jogos do género prova que este é roguelike de fibra, sem red flags evidentes para os adeptos da fórmula. Experimentem Shiren the Wanderer sem grandes receios, que eu vou galopar novamente para a minha zona de conforto, um mar de nuvens pálidas por onde saltitam manadas de platformers e jogos publicados pela Nintendo.
Ano: 2024.
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Steam Deck, através de um código Steam gentilmente cedido pela editora.
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