“A espera sem fim à vista por um
novo Donkey Kong Country pode ser angustiante, mas a brilhante homenagem da
Playtonic Games torna este impasse mais tragável e comportável”. Foi isso que
afirmei quando analisei Yooka-Laylee and the Impossible Lair, há 5 anos. Ou, pelo
menos o que teria dito, não fosse então um redator novato que encarava as
amarras na redação de análises como um marco de qualidade. O certo é que, enquanto
me libertava destas noções jogando outros jogos e redigindo outros textos, os
cinco anos de espera por uma sequência de Donkey Kong Country: Tropical Freeze converteram-se
em dez, e o único sinal de vida do bando de símios consiste num lançamento de Donkey Kong Country Returns na terceira geração consecutiva. A situação
é tão grave que até Pikmin, PIKMIN, está a receber novos jogos/expansões com
mais frequência!
Depois de tanto tempo à espera de que Donkey Kong regresse com o leite e jornal que tinha ido comprar, já é difícil aguentar quieto. Quem não tem cão caça com gato e, de facto, a nossa equipa descobriu
dois gatos, Niko e Luna, em Nikoderiko: The Magical World, um jogo de plataformas
inédito, mas muito familiar…
Desculpem-me, dois mangustos. No começo da campanha, este duo de aventureiros está prestes a concluir uma ardilosa caça ao tesouro, quando o vilão Grimbald e o seu exército de Cobritos chega para se apropriar dos seus espólios, lançando Niko e Luna numa odisseia pela ilha inteira para recuperar o fruto do seu trabalho. Não fazemos ideia do que está dentro deste baú altamente requisitado, mas deve ser algo espetacular para os mangustos tanto se fixarem nele em vez de irem atrás de qualquer outra relíquia: esta empreitada leva-os por cerca de 30 níveis, recheados de inimigos para suplantar e desafios de plataformas para superar.
As regiões que exploramos dividem-se entre locais 2D, que refletem os alicerces de Donkey Kong Country moderno, e segmentos 3D por corredores, reminiscentes de Crash Bandicoot. Ao invés de estarem hermeticamente separadinhas nos seus níveis próprios, estas duas vertentes surgem mescladas e em alternância. A elegância e naturalidade desta transição não tem precedentes e, sempre que viramos Niko de costas para o ecrã e nos adentramos por uma caverna que previamente era um pano de fundo, o mundo do mangusto adquire uma tangibilidade e significância que nunca deixa de nos surpreender e maravilhar.
Ainda assim, entre estas duas vertentes, os desafios em dois planos recebem um favoritismo gritante. Não só as secções em três dimensões são mais fáceis e simples do que as das aventuras do famoso marsupial, mas também são infrequentes ao longo da história. Existem ótimos níveis primariamente 3D, como um diretamente inspirado por Boulder Dash, mas na maior parte dos casos tratam-se apenas de interlúdios entre duas secções 2D; funcionam mais como corta-sabores do que como pratos principais.
Em contrapartida, os numerosos desafios em duas
dimensões capturam o prazer de navegar pelas selvas, fábricas, minas e praias
típicas de um Donkey Kong Country, quer a solo, quer em duo, ao
estilo de Kirby and the Forgotten Land (em que a câmara segue apenas o primeiro
jogador, e o seu companheiro não é penalizado pelo seu dano sofrido). As
suas físicas estranham-se, mas depois entranham-se e, mesmo nunca se tornando perfeitamente
instintivas, a sua implementação diferenciada de inércia acrescenta uma nuance
muito própria aos nossos pulos e sprints. Por seu lado, o level design
irradia profissionalismo e brio em todas as suas pequenas secções individuais, quase
sempre respeitando a fluidez da nossa progressão e a límpida curva de
complexidade.
Quando estas secções são encadeadas
num nível completo, já se notam fragilidades: é usual serem destacadas e utilizadas
quantidades excessivas de inimigos e gimmicks únicas num só nível, o que
prejudica a sua devida articulação. É impossível fazer jus a tantas ideias sem
lhes dar espaço para respirar e, quando estas não são apresentadas numa curva
crescente de complexidade e num clímax conclusivo, os níveis individuais perdem
a capacidade de contar uma história pelo seu design e não se distinguem individualmente na nossa memória. Não é motivo
para alarme; isto só significa que, na pior das hipóteses, estamos a jogar níveis do estilo de Super Mario World em vez de Donkey Kong Country, trocamos um manjar divino por outro. Além disso, as construções de
desafios tornam-se mais focadas à medida que avançamos na aventura, num gradual
aprimoramento que vincou os mundos mais tardios como os meus favoritos.
Houve algo que não melhorou ao
longo da campanha, porque já era perfeito desde o primeiro segundo: o
repertório de segredos para descobrir, todos posicionados de forma estratégica e inteligente. Cada nível esconde duas salas bónus com
desafios cronometrados ao estilo de Donkey Kong Country 2, com exatamente os mesmos objetivos (Collect the Stars, Destroy Them All e Find The Exit). Além disso, existe uma Gem à la
Crash Bandicoot e quatro letras NIKO, baseadas nas letras KONG de Donkey Kong
Country - ao ponto de três das letras serem iguais, mas numa ordem diferente, numa
clara perseguição pessoal para me fritar o cérebro. Se gostam dos jogos Donkey
Kong Country pela sua abundância inigualada de segredos opcionais, sentir-se-ão
em casa neste mundo perfeito para recompensar quem tem visão de lince.
Por esta altura, poderão estar a pensar: “Como Donkey Kong; como Mario; Como Crash; Como Kirby. Não sabes falar de Nikoderiko sem permanentes comparações?”. Culpem o jogo, não o mensageiro. Nikoderiko não tenta dissimular as suas inspirações ou rejuvenescê-las com inovações próprias que eu possa anunciar. Na jogabilidade momentânea, interagimos com gimmicks variadas, bosses imaginativos e interpretações diferentes dos Animal Buddies mas, no grande plano, é impossível destacar uma mecânica decididamente única, algo que não tenha sido emprestado pelo primata da Nintendo. A inexistência de um grande trunfo como o overworld explorável e a estrutura semiaberta de Yooka-Laylee and the Impossible Lair é uma grande oportunidade perdida, mas ainda assim não pretendo marchar com tochas e forquilhas contra os desenvolvedores por terem criado algo tão iterativo e derivativo: se tirar os óculos e brincar com a saturação na minha TV até o pelo do Niko ficar castanho, até posso confundir Nikoderiko com uma sequência humilde do trabalho da Retro Studios, que é precisamente o que desejava com este jogo.
O que é realmente desapontante é
que o jogo não foi capaz de afirmar a sua singularidade através do seu universo, apesar de ter dado os passos mais trabalhosos para esse efeito. Não
é só pelas suas transições entre perspetivas que a ilha ganha textura e
substância: este dinamismo estende-se até a certos segmentos totalmente 2D, em
que a câmara desliza e rodopia em nossa órbita, e a alguns inimigos que transitam
entre o pano de fundo e o plano de jogo, evocando a ação de vários planos de
Kirby Triple Deluxe. Estes mundos vívidos, esplendorosos e recheados de detalhe são
percorridos ao som de um fundo musical majestoso batizado pelo lendário David
Wise, que traz a Nikoderiko uma dose do ambiente sonoro ora contemplativo ora
energético que ele proporcionara aos Donkey Kong Country, embora numa direção
mais atmosférica e contida (que, pessoalmente, a deixa um nadinha aquém dos
trabalhos mais icónicos do compositor).
Então, o que falhou? Num ambiente tão colorido, as personagens são genéricas ao ponto de parecem monocromáticas. Um figurante de um jogo estilizado pode ser memorável pelas suas feições, pela sua marcha, pelos seus efeitos sonoros, e Nikoderiko é extremamente linear e previsível nestas vertentes. Os protagonistas são paradigmáticos deste problema: eu observo, examino e inspeciono Niko e Luna e só consigo ver personagens tiradas de um jogo mobile chinês, ou dois bonecos brinde de ovos de Páscoa de marca branca. Os seus breves diálogos, totalmente dobrados em inglês e com legendas em português do Brasil (com algumas incongruências, mas totalmente compreensíveis), fazem milagres para lhes dar personalidade e presença; porém, esse trabalho não é complementado com animações energéticas e expressivas que vendam a sua excentricidade. Tal também se verifica, por exemplo, no final de cada nível, ocasião em que as personagens fazem uma dança corriqueira como se fossem jogadores free-to-play de Fortnite, quando Crash conseguia ser infinitamente mais carismático só ao esticar os braços e exclamar um jovial barabaaaaaa!.
Com jogabilidade, level design, grafismo e música nos trinques, faltou aquele passinho extra para que o inegável carinho e empenho dos devs fosse deixado completamente a nu sob uma lua cheia. Tudo isto é apenas picuinhices, bem sei, e nem condicionam minimamente a minha recomendação entusiástica do jogo ou a nota final do texto, mas algumas gotas do problema transbordaram sobre a coesão do game design. Já vimos, do nada, caixas que se destruíam quando lhes saltávamos em cima a deixarem de o fazer num segmento específico. Descobrimos blocos verticais banais em que inexplicadamente não podemos fazer um walljump, ao contrário das restantes paredes do jogo. E morremos inesperadamente por termos descido perto do extremo inferior do ecrã, apesar de estarmos à garupa de um animal voador. Pequenas descobertas infelizes que, embora relativamente inconsequentes, colocam em causa as regras que o jogo nos ensinara e a robustez dos pressupostos da aventura (isto para não falar de vários bugs de diminuta importância).
Mas a verdadeira afronta ao nosso
investimento em Nikoderiko está nas recompensas pela exploração. Entre figurinos
de personagens e ambientes, artes conceptuais e músicas, Nikoderiko inclui 120 itens
para desbloquear na sua galeria. Normalmente, um platformer associaria
estas recompensas aos seus segredos especiais dos níveis. No entanto, para Nikoderiko,
1+1 dá 3: não existe qualquer recompensa por obter os 7 colectáveis opcionais
de cada nível e, se quiserem preencher a vossa galeria, precisam de comprar o seu património com as moedas comuns que encontram pelas fases. Vão ter de me perdoar, que a
minha mãe não educou um rapaz presunçoso, mas eu diria que varri a pente fino tudo
o que reluzia na aventura. Não obstante, quando os créditos rolaram e fui torrar
as minhas finanças, apenas consegui desbloquear uns 60%-70% dos artigos do museu.
Ainda que os meus 96% de progresso me deixem a raspar ansiosamente a nuca até fazer uma craniostomia
artesanal, está longe o dia em que faço grinding num platformer.
Conclusão
"Em equipa vencedora não se mexe" é o grande mantra de Nikoderiko: The Magical World. A aventura de Niko e Luna pode ser exageradamente fiel a Donkey Kong Country e Crash Bandicoot mas, quando as suas inspirações são excelsas e a execução tão caprichada, o resultado é necessariamente uma experiência divertida e feita à medida para os amantes de jogos de plataformas, com desenhos de níveis profissionais, imensos segredos para encontrar, uma banda sonora magnífica de David Wise e um patamar de grafismo e dinamismo de câmara difícil de encontrar nos seus contemporâneos. O custo a pagar foi a formação de uma identidade própria, num título que só rema contra a maré para embater contra pequenos icebergues.
O melhor:
- A magia do game design de Retro Studios, recapturada com primor;
- Construções de níveis de elevada qualidade;
- Harmonioso emparelhamento de jogabilidade 2D e 3D;
- Segredos numerosos e bem escondidos;
- Mundos belíssimos e detalhados;
- Músicas sumptuosas de David Wise.
O pior
- Escassa originalidade nas mecânicas;
- Sistema de recompensa pela exploração estranho e frustrante;
- Erros na localização para português do Brasil;
- Pequenas inconsistências na jogabilidade.
Nota do GameForces: 8.0/10
Desenvolvedora: VEA Games
Publicadora: Knights Peak
Ano: 2024
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão Xbox Series X do jogo, através de um código gentilmente cedido pela Knights Peak
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