Análise | The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom - Ecos de um Futuro Radiante

Existe um antes e depois da descoberta do fogo, um antes e depois da revolução industrial e, em The Legend of Zelda, há também um antes e depois dos jogos 3D open-world, que queimaram a fórmula dos predecessores para fazer um novo formato de aventuras renascer das suas cinzas. Breath of the Wild e Tears of the Kingdom são ótimos jogos; magníficos até. Isso não significa que devem ser a exportação singular da série. As duas experiências revolucionárias não vieram substituir formulações arcaicas, mas sim refletir uma nova visão e reajustamento de prioridades. Ganhamos em imersão, experimentação e liberdade; perdemos as odisseias epopeicas estruturadas e as inesquecíveis e intrincadas masmorras. O meio termo que Tears of the Kingdom tenta alcançar entre as duas faces da série demonstra que estas lacunas foram reconhecidas pelos desenvolvedores; ao mesmo tempo, é ilógico esperar que esta admissão resulte num regresso à receita de Ocarina of Time a curto prazo: o sucesso estrondoso dos jogos em mundo aberto não o permitirá.

Quem quer um regresso à velha escola de design mais provavelmente encontrá-lo-á na divisão 2D da série - uma esperança que pode ser o estandarte de The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom, o primeiro Zelda 2D original numa década. Mas 10 anos são muito tempo, especialmente para uma empresa audaz como a Nintendo. Mudaram-se os tempos; mudaram-se as vontades, e surpreendente seria se um novo Zelda 2D escapasse ileso à corrente de subversão de convenções que efervesce nos desenvolvedores há muito, muito tempo, com laivos já discerníveis em A Link Between Worlds.

De facto, Echoes of Wisdom ao mesmo tempo honra e agita os fundamentos dos Zelda 2D, e a grande embaixadora desta nova etapa é a Zelda, que se estreia como protagonista na série que batiza (se ignorarmos spin-offs aquele que não deve ser nomeado)!  É insólito a princesa enfrentar os problemas do reino na linha da frente, mas desta vez ela não tinha escolha: o valente Link foi um dos cidadãos engolidos pelas fendas misteriosas que têm surgido pelo reino, e o Rei de Hyrule foi substituído por um impostor que declara a heroína como uma traidora. Vendo as lanças dos seus próprios soldados apontadas a si, a fugitiva é obrigada a deitar mãos à obra para desvendar a causa das maleitas do reino e resgatar Link e o seu pai.

Com uma simples troca de protagonistas, a jogabilidade sofre um mundo de diferenças: encarnando a coragem, Link dava o corpo às balas e combatia as forças malévolas com espadas, bombas e bumerangues; representando a sabedoria, Zelda emprega uma abordagem mais metódica e graciosa. Através do poder do ceptro Tri, a princesa é capaz de memorizar e posteriormente criar Ecos (réplicas) dos objetos e criaturas que encontra; por outro lado, usando sincronização, ela consegue copiar o movimento de outra entidade no mundo (por exemplo, unindo-se a um pássaro para levantar voo) ou, em contrapartida, fazer a entidade acompanhar a movimentação de Zelda, numa reinterpretação da habilidade Ultrahand. Além disso, o salto foi totalmente integrado na movimentação da heroína, sendo uma excelente adição que nos obriga a integrar a verticalidade e flexibilidade extra na busca de segredos e resolução de problemas.

Mãe, estou no jogo!

Graças a estes alicerces, em cada impasse, cada fosso inultrapassável, cada inimigo hostil, nasce um puzzle, para o qual cada jogador terá uma solução diferente. Perante uma caixa de madeira a bloquear o caminho, uns jogadores poderão queimá-la, outros parti-la-ão com lâminas cortantes ou atirando-lhe um calhau em cima, e ainda haverá quem educadamente a empurre para fora do caminho com sincronização. Nunca um puzzle tem uma só solução, nunca um Eco tem uma só função, e, quando invoco um peixe-lanterna para me guiar por águas profundas, ou envio um Boarblin hostil para o infinito numa plataforma voadora, sinto-me no comando de uma aventura intimamente minha.

Até o mesmo jogador, em pontos diferentes da jornada, responderá aos contratempos de forma completamente distinta. Ora pela constante descoberta de novas réplicas, ora pelos ocasionais momentos Eureka que Echoes of Wisdom tão elegantemente suscita, ora pelas inúmeras variáveis que influenciam cada confronto, vi as minhas estratégias de batalha em constante transformação durante quase toda a campanha (infelizmente, até desbloquear criaturas poderosíssimas que trivializam a maioria das opções) - desde escolher os melhores Ecos para lutarem por mim como se eu fosse um treinador de Pokémon, a usar o poder de tochas ardentes e blocos de água para despachar hordas como um Avatar da Temu, ou a usar a sincronização para controlar monstros poderosos mas lentos, dando-lhes remotamente a agilidade que tanto careciam. A aventura da Zelda brilha em cada etapa desta escalada de estratégias, neste exercício de impressionante brainstorming sem atritos, e apenas restrito pelo "limite” de energia que podemos usar em cópias em simultâneo.

Porém, entre os passos firmes em degraus luzidios, lá pisamos em falso em madeira putrefacta. Se o yin está em deixar a nossa imaginação tomar forma, o yang encontra-se nos combates passivos, em que aguardamos impavidamente pela resolução do conflito entre os monstros e os nossos Ecos. É uma estratégia que funciona demasiado bem; em alguns casos, é a mais segura e portanto apetecível, apesar de transformar encontros potencialmente climáticos em entediantes compassos de espera (especialmente se jogarem no modo heroico, que torna os inimigos em esponjas de danos sem escalar significativamente a dificuldade). O boss de Eldin Volcano que o diga: na sua presença, pousei o comando da Switch e peguei no telemóvel para ler notícias, apenas voltando a controlar momentaneamente a Zelda de minuto a minuto como quem impede um aparelho de entrar em standby.

Se o combate se mantém estimulante e divertido apesar destes percalços, a travessia revela-se extremamente simplória. Desde os primórdios da aventura, gravitei sempre para as mesmas cinco réplicas eficientes, e qualquer experimentação subsequente foi apenas um desvio fugaz da pêntade invicta. Até podem existir alternativas melhores mas, se não tiver ideias concretas em mente, a péssima interface desencoraja-me de congeminar novas soluções. A escolha dos Ecos é feita num menu horizontal único e longuíssimo, onde procurar uma entidade específica é um pesadelo. Para piorar a situação, é-me dada a opção de ordenar as réplicas por frequência de uso, amplificando o canto de sereia que me urge a render-me à inércia indiferente. É incompreensível que a ação principal do jogo dependa de um menu tão contra-natura quando, à cabeça, não faltam maneiras de melhorar a interface. Existem vários monstros e objetos da mesma espécie/tipo, então porque não agrupá-los em colunas verticais, num menu semelhante ao XMB da PlayStation 3? Ou, melhor ainda, porque não utilizar menus circulares ao estilo de Super Mario Maker 2?

Acima: captura direta do jogo. Abaixo: proposta alternativa de interface, conceptualizada por mim.

Este problema, tal como o deslumbramento e encanto da descoberta, transita verbatim de Tears of the Kingdom – e é apenas a ponta do icebergue da sobreposição entre os dois jogos. Acampamentos de Bokoblins e doutros monstros, bosses opcionais, indumentárias com skills passivos, a preparação de iguarias de regeneração de vida e buffs temporários e um sistema robusto, organizado e avolumado de side quests marcam presença em Echoes of Wisdom, concedendo-nos níveis sem precedentes de interação e familiarização com o mundo e os seus habitantes e conferindo-lhes maior profundidade e vivacidade do que nunca.

De igual forma, a estrutura da história parece um casamento entre Tears of the Kingdom e A Link Between Worlds: nas missões principais, precisamos de ajudar as grandes povoações do reino, que atravessam problemas relacionados com as fendas. Regra geral, existe mais de um objetivo disponível em simultâneo, dando-nos liberdade na ordem em que os concretizamos; porém, só desbloqueamos o conjunto de tarefas seguinte quando concluirmos todas as missões centrais em aberto. Assim, Echoes of Wisdom beneficia de uma exploração semi-aberta, sem prescindir de uma progressão metódica de dificuldade e de uma narrativa linear (no que toca aos seus eventos major).

A grande diferença em relação a Tears of the Kingdom é que todos estes cânones vanguardistas surgem aplicados a um mundo absorvente e gigantesco do estilo clássico, com Heart Pieces, colectáveis opcionais, salas secretas escondidas, minijogos, masmorras e tudo o que mais temos direito. Com formas de navegação refrescantes inseridas numa construção familiar, o velho torna-se novo e dá azo a um estilo de exploração sui generis. Toda a barreira pode ser transposta, toda a muralha pode ser escalada. As árvores perenes que barravam o nosso avanço em A Link to the Past são agora a calçada que pisamos, tornando o backtracking mais convidativo e diminuindo o impulso de recorrer a fast travel. Se tivermos Ecos e criatividade suficiente, podemos fazer o reconhecimento de cada milímetro quadrado do mundo antes de terminarmos a segunda masmorra do jogo! 

Também a reinventar a tradição, o Mundo Inerte vem substituir o Dark World de A Link to the Past e A Link Between Worlds. Mergulhando nas fendas do reino, a Zelda encontra um vazio infinito, onde o terreno, objetos e seres azarados que foram absorvidos por ele flutuam, congelados no tempo. Nestes abismos que desafiam a razão, com árvores que se projetam do teto e rios de lava flutuantes, somos confrontados com plataformas acidentadas que colocam os nossos poderes numa nova perspetiva, sendo recorrentemente delicioso encontrar uma solução para os obstáculos inusitados que nos apresentam.


Para além destes desafios, é aqui que encontramos as masmorras. Digo, as Masmorras - é preciso mostrar reverência para com estes locais icónicos. Lorule Castle, Face Shrine, Tower of Hera (de ALTTP)... é nestes cubos de Rubik, atolados de puzzles de fritar neurónios, que as mecânicas dos jogos atingem novas alturas e os desenvolvedores revelam o seu admirável nível de engenho. E se me guiar pelas masmorras de Echoes of Wisdom... os desenvolvedores querem passar uns tempos em Malibu. Estas são, de longe, as masmorras mais fáceis e básicas dos Zelda 2D. A sua simplicidade é tal que as percorri em autopiloto, sem nunca precisar de pensar mais afincadamente sobre a construção da estrutura como um todo ou sobre os puzzles individuais que as preenchem. Este nível de atenção ao detalhe, constantemente exigido pelos predecessores, só foi estimulado na aventura da princesa em muitas raras doses, e sempre para encontrar itens totalmente opcionais e não o caminho em diante. Estranhamente, existem enigmas recompensantes, mas estão fora das masmorras e posicionados nas inúmeras salas secretas do continente de Hyrule.

Convenhamos que, neste ponto, não faz favores ao jogo partilhar o estilo gráfico do remake de Link’s Awakening, que torna mais vívidas as memórias deste predecessor magnífico. Mas como poderia a Nintendo não regressar a este belíssimo estilo de arte, com deslumbrantes mundos diorama e adoráveis personagens de porcelana? E a soberba banda sonora não se fica nada atrás, regressando às composições mais energéticas e memoráveis que são raras nos Zelda open-world e trazendo um tom próprio de irreverência. Por várias vezes reconhecemos certos jingles e, antes de termos tempo de apontar ”Lon Lon Ranch! Zelda’s Lullaby!”, já o tema se tinha metamorfoseado nalgo totalmente novo – num refrescante e viçoso entrelaçamento de clássico e moderno que reflete a filosofia de um jogo que retorna a um passado feliz, com os olhos ambiciosos postos no futuro. As únicas manchas na componente audiovisual são o efeito tilt-shift que desfoca parte do ecrã e as recorrentes quedas de taxa de fotogramas, que se fazem sentir ubiquamente quer estejamos no vasto mundo aberto quer estejamos numa sala fechada com um boss.

Dentro dos problemas técnicos, resta-nos falar da localização do jogo para português do Brasil. Alguns poderão estar a perguntar-se com estupefacção “Português do Brasil é um problema técnico?”; e não, não é. O problema é não existir a opção de mudar a língua para inglês dentro do jogo. Embora a tradução para português do Brasil seja competente e plena de personalidade, os seus textos nunca nos deixam esquecer as diferenças entre as variedades portuguesa e brasileira da língua e, enquanto fã da série, prefiro conhecer os nomes internacionais dos locais e inimigos para facilitar discussões, pesquisas de músicas, etc..

Da régie dizem que temos tempo para mais uma, uma indignação. Ui, o que é que hei-de... Ah - como é que um Zelda 2D pode ter um núcleo emocional tão pobre? Não há nada na história que chegue aos pés do segredo devastador de Koholint ou dos tons trágicos da história de Lorule. A personalidade de Tri (o ser místico que nos acompanha) é desenvolvida, mas a sua trajectória ronda a superficialidade e desinteresse da de Fi de Skyward Sword. É difícil olhar para o estilo visual de Link’s Awakening e não tecer comparações entre a montanha-russa de emoções desse remake e a emocionalidade infantil vigente na aventura da Zelda; uma pena porque, mesmo sendo Echoes of Wisdom excelente, queria levar do jogo memórias que não fossem da minha inteira criação (para além do ótimo clímax, admitamos).



Conclusão

The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom não é nada menos do que uma brilhante celebração da série. Ao recuperar a estrutura dos jogos clássicos ao mesmo tempo que a transcende com as inovações das aventuras de mundo aberto, esta aventura concilia o melhor dos dois mundos e utiliza a sua familiaridade para nos apanhar desprevenidos com a sua exploração exótica e refinada. A estreia de Zelda como protagonista tardou mas, salvo algumas dores de crescimento e lacunas nas suas masmorras, dificilmente poderia ter sido mais triunfante.

O melhor

- A experimentação libertadora e entusiasmante de Tears of the Kingdom, aliada aos pilares dos magnificos antecessores.

- Refrescante forma de progressão e combate...;

- Num mundo inédito e gigantesco, recheado de segredos para descobrir e salas puzzles para superar.

- Grafismo deslumbrante e banda sonora irrepreensível.


O pior

- Masmorras facílimas;

- Algumas arestas a limar no sistema de Ecos;

- Impossibilidade de mudar a linguagem dentro do jogo;

- Quedas constantes da taxa de fotogramas.

Nota do GameForces: 8.5/10


Título: The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom;
Desenvolvedora: Nintendo; Grezzo;
Publicadora: Nintendo
Ano: 2024

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Nintendo Portugal.

Autor da Análise: Tiago Sá
Análise | The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom - Ecos de um Futuro Radiante Análise | The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom - Ecos de um Futuro Radiante Reviewed by Tiago Sá on outubro 01, 2024 Rating: 5

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