Levantem a mão se imaginaram que a Nintendo iria lançar um novo jogo Famicom Detective Club no ano do nosso Senhor 2024, mesmo após verem o (genial) teaser inicial de Emio. Agora, quem levantou a mão vai para o cantinho do castigo, que mentir é feio. Nem um ChatGPT, Gemini ou outro algoritmo de inteligência artificial treinado nos jogos que a Nintendo lançou nos últimos 15 anos congeminaria uma previsão remotamente semelhante!
É verdade que recebemos dois remakes dos
velhinhos Famicom Detective Club em 2020, mas mais nada fazia prever um regresso a este tipo de visual
novels puras, cujos temas sensíveis e quase completa falta de interatividade
traem inteiramente os pilares pelos quais o catálogo da Nintendo se rege e é
reconhecido. Esta é uma anomalia peculiar, mas é uma anomalia que vejo com bons
olhos: murder
mysteries
sempre
me
fascinaram,
e estava extremamente curioso para descobrir em que medida o hardware mais moderno da
Nintendo Switch, o distanciamento de 30 anos dos predecessores e a postura
comercial mais consolidada da Nintendo modelariam a experiência.
Até porque The Missing Heir, o jogo inaugural da série, deixava imenso a desejar. A investigação dos corpos e dos assassinatos individuais é tratada como secundária, apesar de os corpos continuarem a cair e empilharem-se que nem velhos desidratados na Festa do Avante. As maiores revelações do enredo são evidentes a vários capítulos de distância, e a investigação que se prende com os eventos do presente revela-se supérflua no clímax, no qual as suas respostas são entregues de mão beijada. Ao mesmo tempo, demasiadas pequenas incongruências ou mesmo mistérios ficaram por explicar, incluindo alguns cuja importância a história fizera questão de vincar. Em oposição à história previsível, as ações a tomar para progredir a narrativa são crípticas ao ponto de tornarem a experiência atroz – algo fascinante num jogo sem movimentação livre e controlado pela navegação de menus com menos opções do que um TBRPG da SNES.
Existia imensa margem para evoluir e aprimorar a fórmula e, quando iniciei Emio - The Smiling Man, a sua premissa já emanava o aroma de uma visão de design mais cristalina. Um adolescente encontrado morto por estrangulamento, com a cabeça coberta por um saco de papel com uma cara sorridente desenhada? Em circunstâncias semelhantes às de uma série de homicídios não resolvidos 18 anos antes, em que três raparigas foram assassinadas no mesmo modus operandi? E a lembrar o mito urbano de Emio, sobre um homem que envergava o mesmo saco de papel e asfixiava raparigas a chorar, prometendo dar-lhes “um sorriso que dura eternamente”? Ainda estava a polícia a pedir uma mãozinha à Utsugi Detective Agency, e eu já ia cofiando impacientemente o bigode e treinando a minha imitação de Hercule Poirot com antecipação!
E sim, "Utsugi Detective Agency".
Surpreendentemente, este não é um reboot, mas sim uma sequência direta,
em que o Trio Odemira composto pelo protagonista, a sua colega Ayumi e o patrão
Utsugi regressa dois anos após os eventos de Missing Heir - com personalidades tão planas como sempre, mas melhor aspeto do que
nunca, graças à qualidade superior dos gráficos e animações face aos
(já de si visualmente caprichados) remakes dos predecessores! Certos eventos
do passado das personagens são inclusivamente mencionados em Emio, pelo que não
é má ideia jogarem Famicom Detective Club: The Missing Heir e Famicom Detective
Club: The Girl Who Stands Behind antes de abrirem esta investigação. Ao mesmo tempo, a história de Emio é completamente
independente dos jogos anteriores, e podem começar pelo jogo mais
fresquinho e reluzente com paz de espírito.
Apesar da passagem do tempo,
a conduta de investigação da nossa personagem não mudou: continuamos a visitar
e investigar locais pertinentes, a examinar objetos e pessoas e a questionar
testemunhas e transeuntes relevantes. A interatividade está no
mesmo nível dos predecessores; por outras palavras, quase não existe. Vão passar 90% do tempo a ler os diálogos na vossa língua estrangeira de eleição (infelizmente, não existe tradução para português), e a ouvir a sua dobragem profissional e imersiva em japonês. No resto do tempo, terão de selecionar as ações que pretendem tomar através de um menu de opções
auto-explicativas, como "Olhar/Examinar", "Perguntar/Ouvir" e "Viajar". Existem novas inclusões e, destas, “Pensar” é a estrela do cartaz: se não souberem o que
fazer, este comando vai dar-vos uma dica para que nunca fiquem presos.
Porém, esta ajuda não é a cura
para as frustrações dos predecessores, mas sim um penso colado em cima de uma
perna partida. A jogabilidade está infestada de idiossincrasias
contra-intuitivas: ao contrário do expectável, as personagens não dizem
tudo o que têm a dizer sobre os temas de uma só vez. Precisamos
de selecionar cada opção repetidamente e insistentemente, até espremermos completamente o nosso
interlocutor. Pior ainda, às vezes temos de
saltitar entre temas ou ações alternadamente para que a conversa avance a
conta-gotas, sem que haja uma lógica subjacente a este comportamento pendular.
Consequentemente, o nosso progresso faz-se por tentativa e erro, numa dinâmica
cansativa que seria corrigida se a interface do jogo clarificasse quais as linhas de atuação que
já dissecamos totalmente, ou se as personagens desembuchassem tudo de uma vez.
Posto de outra forma, se a jogabilidade fosse mais pragmática e espelhasse a
fórmula testada dos jogos de Shu Takumi ou da Spike Chunsoft.
...Ou, então, se os
desenvolvedores erradicassem por inteiro a jogabilidade deste jogo. Afinal, esta é pouco estimulante e pouco ou nada exige de nós: não somos desafiados na
formulação de deduções, nem na atenção a detalhes no cenário, nem na interrogação e
deslinde de contradições de testemunhos. O maior (e único) teste às nossas
capacidades corresponde aos quizzes de fim de capítulo, em que os
detetives recapitulam os achados das peripécias recentes. E estes exames quase nunca vão
além da recapitulação, quase nunca nos instigam a formular inferências para
chegar a novas conclusões; só servem para confirmar que não passamos as horas anteriores a olhar para o teto ou a tirar cera dos ouvidos. Se por algum motivo não souberem a resposta, podem sempre consultar o bloco de notas, onde o jogo reúne automaticamente todos os sujeitos e informações chave do caso em resumos organizados.
Ou não, porque podem escolher sempre as respostas mais mirabolantes para avacalhar e a única consequência resume-se a brevíssimos diálogos inconsequentes e uma avaliação final que é opcional e desligada do enredo.
Sendo mais intrusiva do que imersiva, a interatividade é um mal necessário para experienciarmos a história... mas a qualidade da narrativa compensa por qualquer inconveniência! Enquanto The Missing Heir denota um certo descuido, impaciência e negligência para com os seus mistérios, The Smiling Man é disciplinado e metódico. As incógnitas estabelecidas nos primórdios da história permanecem no nosso foco durante a investigação inteira sem serem descuradas, mesmo após os capítulos sucedâneos empilharem novos enigmas para esclarecer. A lenda de Emio paira permanentemente sobre as nossas cabeças: é um assunto recorrente e inescapável em cada diálogo e descoberta, mas que demora a assumir contornos claros. Durante a quase plenitude da campanha, a figura mantém-se enigmática na sua constante presença de espírito, efetiva ausência de corpo, e nos relatos questionáveis de terceiros, estabelecendo fugazes notas leves de terror psicológico.
O fluxo de informação ao longo
dos capítulos é moroso e escasso mas constante, proporcionando uma sensação de progresso em cada passo dado, sem nunca trair o suspense dos grandes
mistérios. Terão todos os assassinatos sido perpetrados pelo mesmo homicida?
Existirá algum fundo de verdade no mito urbano de Emio? São só duas das
diversas questões que vos deixarão a matutar, teorizar e roer unhas durante a investigação
inteira.
E acreditem que vão teorizar.
Aprecio imenso como, ao contrário de outros jogos de murder mysteries, a
verdade estabelecida raramente é desafiada com grandes reviravoltas. Para quem acompanha Ace Attorney e Danganronpa, este poderá parecer um ponto negativo; para
mim, foi um convite a constantes bitaites e palpites, como se eu fosse um silencioso Watson
a acompanhar os detetives. Consegui efetivamente prever algumas das maiores
respostas do caso, e digo-vos, o sentimento de realização que senti... Simplesmente indescritível!
Curiosamente, eu também conseguira acertar na mosca quanto aos mistérios de The Missing Heir, mas apenas me sentira indiferente face à sua previsibilidade. Emio caiu nas minhas boas graças pela sua profissional afinação: fosse o mistério demasiado simples e cliché ou imprevisivelmente excêntrico, não lhe reconheceria esta qualidade. Pela mesma razão, se em Missing Heir detestei como várias respostas me caíram no colo de modo independente do trabalho de investigação, foi-me fácil perdoar a mesma situação em The Smiling Man por uma mudança de perspetiva: em vez de medir a importância do rastro de indícios do ponto de vista das personagens intra-universo, passei a encarar as pistas como um convite ao jogador para especular e tentar solucionar o caso.
Consegui perdoar, mas não esquecer. Não deixam de existir aspetos que mereciam ter sido mais bem trabalhados: por mais que tenha apreciado o mistério, o seu clímax foi extremamente abrupto e careceu de um sentimento de crescendo, e continuo a não apreciar os métodos investigativos do protagonista, que tipicamente se cingem a inquirir cidadãos aleatórios na rua sem demonstrar quaisquer dons argumentativos, dedutivos ou persuasivos e a rezar para eles saberem informações inéditas de acontecimentos de há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante.
Igualmente importante para o meu prazer com esta narrativa foi a maturidade deste mundo. A atmosfera é mais sóbria do que os Ace Attorney, Danganronpa e AI The Somnium Files, mas ainda existem frequentes
momentos levianos e humorísticos que aliviam a seriedade e aproximam-nos empaticamente das
personagens. Mas ainda mais surpreendente e marcante é o seu núcleo emocional
forte e pungente. Sem querer entrar em spoilers, The Smiling Man não é só
uma história de homicídios, é uma história humana e impactante de traumas não resolvidos, com representações nuas e cruas de violência doméstica, alcoolismo e
até eventos macabros que fazem Ace Attorney parecer Geronimo Stilton e fazem justiça à classificação etária para "maiores de 18 anos".
Após assistirmos aos créditos, é
inacreditável olhar para trás e pensar "Este é um jogo Nintendo. Publicado
pela Nintendo. Desenvolvido pela Nintendo." (mesmo que em parceria com a
MAGES). Temia que a Nintendo desta década censurasse o produtor Yoshio Sakamoto
com um braço de ferro; em total oposição, vislumbrei as suas rédeas mais livres
e inspiradas do que nunca. Se gostam de romances policiais ou visual novels,
deem uma oportunidade a Emio - The Smiling Man (que tem uma versão demo gratuita na eShop, cotovelada): todo o incentivo que a Nintendo tiver para abandonar a
sua zona de conforto é bem-vindo, especialmente se for mantido este nível de qualidade em futuros projetos vanguardistas.
Conclusão
Quando olho para Luigi's Mansion (1), Famicom Detective Club e The Legend of Zelda: Majora's Mask, sinto angústia na certeza de que foram um produto do seu tempo, de que a Nintendo seria incapaz de desenvolver jogos tão diferenciados em temáticas e ambientação nos dias de hoje. Emio – The Smiling Man parece indicar o contrário. Esta história adulta, com mistérios estimulantes e uma conclusão marcante, brilham resolutamente e independentemente do estúdio que a concebeu, apesar de alguns tropeções penosos na jogabilidade.
Desenvolvedora: Nintendo; MAGES;
Ano: 2024
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Nintendo Portugal.
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