Análise | Natsu-Mon: 20th Century Summer Kid - Eu Quero Voltar para a Ilha (do Japão Rural)

 

As costumárias férias de agosto são para muitos a aguardada oportunidade para fugir à rotina - não só nos seus pontos baixos, como também nos pontos altos. É natural desejar um descanso do trabalho e da lida da casa, mas parece que algumas pessoas precisam de dar um tempo até a hobbies como os videojogos. Já queimei demasiados neurónios na cacholeta a tentar entender o assunto: é difícil para mim encontrar o potencial de enfastiamento da lavagem do carro, corte da relva ou da limpeza da casa nas atividades que me dão prazer: a leitura, a natação, os videojogos, etc.. Porém, compreenda eu ou não, desde um amigo que "andou uns tempos sem vontade de jogar” a membros do GameForces que estão a tirar um “mês sabático” deste passatempo, só tenho de aceitar que há quem precise de um breve escape desta forma de escape. 

Desafiando esta necessidade de repousar os dedos, Natsu-Mon: 20th Century Summer Kid parece ser um lançamento certeiro para as vítimas desta fadiga. Um jogo em que visitamos uma vila rural do Japão na pele de uma criança nas suas férias de agosto, em que podemos usar o nosso tempo limitado como bem nos apetecer? Sem controlos complexos, desafios intransigentes para ultrapassar ou sequer objetivos obrigatórios, o jogo é um genuíno e descomplexado convite ao relaxamento. Até o podem ver como uma transposição das vossas férias para a esfera digital!

Durante os 31 dias do título, podem passar o tempo a pescar, a colher cogumelos, a capturar insetos e a cobiçar e eventualmente comprar brinquedos com um brilho nos olhos. Ou, para os menos dados a botânica e colecionismo, podem conhecer os aldeões ou brincar aos detetives com as crianças. Até podem ficar manter contacto visual constante com um calhau, e ninguém vos vai repreender ou tentar impingir qualquer ação - mesmo que a história vá ocasionalmente mostrando as consequências do nosso (in)cumprimento das suas metas.

Isto não significa que somos abandonados ao desbarato em Yomogi Town: por um lado, a história leve do jogo incentiva-nos a poupar 30000 ienes para ajudar a trupe de circo dos nossos pais, e várias pequenas novidades e objetivos temporários são introduzidos faseadamente para manter a experiência revigorada. Por outro, o mundo aberto surpreendentemente grande para um título desta envergadura esconde imensos pequenos objetivos para realizarmos, como pescar peixes raros, encontrar botas perdidas de pares, ou mesmo investigar as aparições de uma criança fantasma (zashiki-warashi). O importante é que todas estas missões são opcionais, e funcionam mais como sugestões de ocupações do que ordens resolutas.

Com este nível de conteúdo e variedade, não consigo evitar comparar a minha experiência com a que tive em Animal Crossing: New Horizons. Enquanto abandonei o jogo exclusivo da Nintendo com a sensação de ter visto e feito tudo o que havia para fazer e completamente nauseado com o nível de repetição, saí de Natsu-Mon satisfeito e consciente de que uma boa porção de conteúdo me escapara.  Noutros jogos, esta noção atormentar-me-ia, mas neste título sou capaz de a aceitar tranquilamente como uma parte da proposta e como um bom pretexto para regressar ao jogo em férias futuras. Caso não partilhem desta serenidade e prefiram ter mais tempo para tirar o máximo de proveito da Yomogi Town (ou até pretendam encurtar a estadia pela aldeia), o jogo dá-vos a laudável opção de alterar a duração dos dias, uma opção comummente ausente noutros simuladores de vida.

E, se qualquer ação tomada em Animal Crossing: New Horizons após o tutorial revelava-se supérfluas, as pequenas mas abundantes e variadas missões de Natsu-Mon mantiveram-se continuamente cativantes. Porque a formação de laços com os habitantes de uma povoação, a descoberta de um mundo com cultura e construções pré-concebidos e a sua exploração em busca dos segredos nele escondidos foram-me infinitamente mais recompensantes do que a criação de uma ilha para inglês ver, sem qualquer interatividade e com o singular propósito de enfeitar a galeria da Nintendo Switch e perfis do Twitter. Existe algum encorajamento a repetição em Natsu-Mon, i.e. nos exercícios de alongamento matinais e no acendimento de lanternas ao longo de vários dias, que pode ser frustrante dado o tempo limitado que temos na aldeia, mas, novamente, a escolha de repetir estas atividades recai sempre sobre nós.

Aliás, mesmo com carácter facultativo, as nossas ações em Natsu-Mon adquirem significado acrescido no seu contributo para a nossa meta de 30000 ienes, e especialmente no diário de bordo que o menino mantém. Nele, cada pequena interação e descoberta fica adoravelmente eternizada num desenho rabiscado e numa de trẽs opções de textos à nossa escolha. Este diário é também um constante lembrete de que não estamos num mundo fictício qualquer: as espécies de peixes e insetos, a arquitetura dos edifícios, e a rotina e os pequenos hábitos dos seus habitantes, mais do que simplesmente complementar adequadamente o enquadramento do jogo, também atuam como uma introdução singela a uma cultura distinta, e elevam o jogo a um pouco mais do que um entretenimento passageiro. Talvez até seja demasiado fidedigno ao seu enquadramento geográfico, pelo menos nalguns elementos visuais: há placares e folhas de carimbos que são exibidos unicamente em japonês e, apesar de a sua compreensão nunca ter sido impeditiva da nossa navegação e exploração, teria sido proveitoso contar com legendas que clarificassem o seu conteúdo. 

É uma ambientação serena, convidativa e caracteristicamente única, evocativa de um tempo distante nas nossas vidas de maior encanto e apreço no mundo à nossa volta. De um tempo em que o nosso meio ainda não tinha sido compartimentado em caixinhas de rotinas, leis presumidas e verdades absolutas, e para uma ilha desconhecida onde as singulares premissas e regras (ou ausência delas) promovem um estilo de jogo diferente de qualquer outro. Enquanto jogador que nunca sentira este nível de fascínio e compenetração num simulador de vida, vi-me genuinamente investido na Yomogi Town, e em tirar o máximo destes 31 dias de paz. 

Num jogo onde a simplicidade é fundamental para a imersão e nostalgia proporcionadas, sinto que ainda assim os habitantes simples são a sua maior lacuna. Num jogo temporalmente restrito como este, tinha a curiosidade de saber se cada NPC teria uma rotina própria, de modo a que o seu comportamento também fosse intrinsecamente intrigante e educativo; no entanto, nenhum dos dois NPCs aos quais dediquei a companhia de um dia ingame fizeram mais do que correr até a um local designado e lá manter-se de plantão até ao pôr do sol.

Do mesmo modo, poucas personagens têm algo interessante ou marcante para partilhar. Pode-se dizer que os seus diálogos leves encaixam na atmosfera pacífica e leviana de Natsu-Mon e que, se os habitantes nos despejassem a alma, não nos sentiríamos devidamente na pele de uma pequena criança com grave negligência parental, mas tais racionalizações não apaziguam o meu desejo de ter algo que me afeiçoasse às personagens - ou sequer que me permitisse reconhecê-las, dada a semelhança exagerada entre alguns dos aldeões.

Algo que também prejudica a (de resto ótima) imersão na cidadela é a performance. O botão de correr está a pender mais para um botão de cefaleias, tal é a magnitude e irregularidade com que afetam a taxa de fotogramas – taxa essa que, mesmo quando nos arrastamos a passo de caracol, só se segura nos 30FPS nas infrequentes situações em que nos restringimos a um ambiente fechado. Por mais aberto que possa ser o mundo pelo qual nos aventuramos e por mais envolvente e relaxante que possa ser a sua ambientação, a superficialidade das interações e o estilo cell-shaded apelativo, mas simples e desbotado não chegam perto de justificar os problemas de performance que se verificam no título, e apenas os considero toleráveis dada a natureza lânguida da experiência.



Conclusão

Se quiserem recuperar a alegria de descobrir o mundo como uma criança, Natsu-Mon conquistar-vos-á como dificilmente algum outro jogo do gênero o fez. A liberdade que nos concede nas formas de desfrutar o tempo, combinada com um limite temporal que nos instiga a apreciar cada momento na acolhedora Yomogi Town, fez-nos correr, saltar, investigar e descobrir como nunca, desenterrando o fascínio juvenil de tempos mais simples que a vida tinha arrastado para os confins da nossa memória.


O melhor
- Experiência simples, serena e com liberdade refrescante;
- Captura deleitosa do charme de explorar na pele de uma criança;
- Bastantes objetivos e pequenas surpresas para descobrir;
- Mundo aberto amplo;
- Sistema de diário que valoriza as nossas ações.

O pior
- Problemas de performance significativos;
- Maioria das personagens carece profundidade e memorabilidade;
- Alguns elementos visuais sem tradução;
- Alguns apelos a repetição.

Pontuação do GameForces – 8.5/10

Título: Natsu-Mon: 20th Century Summer Kid
Desenvolvedoras: TOYBOX Inc./Millennium Kitchen Co.
Publicadora: Spike Chunsoft
Ano: 2023-2024

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Spike Chunsoft.

Autor da Análise: Tiago Sá

Análise | Natsu-Mon: 20th Century Summer Kid - Eu Quero Voltar para a Ilha (do Japão Rural) Análise | Natsu-Mon: 20th Century Summer Kid - Eu Quero Voltar para a Ilha (do Japão Rural) Reviewed by Tiago Sá on agosto 16, 2024 Rating: 5

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