Análise | SCHiM - Jogo de Sombras

Num qualquer dia pregresso da minha infância, escassos minutos antes dos ponteiros do relógio se sobreporem firmes e hirtos, a mão rugosa que me guia estacionou o carro em frente a um muro, deixando-o completamente exposto ao sol abrasador. Não havia nenhum pára-sol na bagageira para escudar o automóvel, mas existia uma carta na manga da minha progénie que foi celeremente partilhada comigo. Por ter decifrado a trajetória da estrela flamejante no céu, ele pudera abandonar o carro com a certeza de que, nas horas seguintes, a sombra que se projetaria da colmeia de tijolos abraçaria o veículo e mantê-lo-ia fresco para o nosso eventual regresso.

Dando-nos alento num dia de calor, ajudando-nos a enxergar o ecrã de um telemóvel no exterior, ou alimentando a imaginação de uma criança que finge que o chão é lava, as sombras adquirem um significado que sobrepuja a mera ausência de luz. De certo modo, tentar compreender, antecipar e jogar com a transformação das sombras ao longo do dia é uma pequena forma de controlo sobre a realidade, e até diria que transparece um ligeiro fascínio juvenil face às rodas de geringonça que regem o Mundo que respiramos.

Se pensam que esta introdução é desajustada para uma análise, é porque ainda não tiveram oportunidade de experimentar SCHiM, um título com o seu quê a dizer sobre o valor da vida. A produção indie arranca com uma sequência interativa sem palavras das diferentes etapas da vida humana, do desenvolvimento de um petiz num adulto, e os altos e baixos que esta metamorfose acarreta. E é num destes pontos infelizes que SCHiM abranda e se detém, num momento desmoralizante ao ponto de o homem perder o seu espírito.

Esta frase, usualmente figurativa, aplica-se à letra nesta história: o espírito, a alma de todos os seres vivos e objetos é representada por um schim, um ser reminiscente de um sapo que vive dentro da sombra do seu portador. Quando o schim que controlamos é separado do homem, cabe a nós reunirmo-nos com ele antes de ser tarde demais. Para isso, precisamos de saltar de sombra em sombra em dezenas de níveis, para não perdermos o nosso humano de vista. Uma história ultimamente simples, mas desenvolvida com ponderação nas dezenas de cinemáticas breves que iniciam os níveis, e capaz de oferecer uma contextualização substancial à jornada de desafios de plataformas que atravessamos.

Todas as sombras discerníveis representam um porto seguro para o schim, enquanto as restantes superfícies evaporarão o sapo de tinta em instantes. Esta dicotomia entre a segurança e o perigo, entre tudo o que existe e o lado que tudo esconde do Sol, é acentuada pelo estilo visual apropriadamente monocromático. Qualquer frame individual destes locais tridimensionais amplos é digno de ser convertido num papel de parede, e este mundo de tons suaves, mais do que roubar o nosso fôlego com paisagens de outra forma mundanas, gera um elo robusto entre jogabilidade e apresentação. 

Estas cores amenas indicam-nos também a direção zen tomada pela aventura, especialmente se as conciliarmos com os efeitos sonoros dulcíssonos e as melodias relaxantes de ambiente. Em parte, esta serenidade é alcançada com a evicção de quebras na linguagem visual do jogo: a distinção pristina entre terreno seguro e inseguro e a sua codificação através de sombras permite que pessoas, animais e qualquer objeto sejam indiretamente usados como plataformas. Consequentemente, os desenvolvedores puderam implementar padrões de movimentação variadíssimos, sem que tal implicasse um processo de aprendizagem adicional para o jogador. Por outro lado, contamos com várias ajudas para suavizar os desafios em que participamos: o premir de um botão informa-nos rapidamente da nossa posição relativa do objetivo a qualquer momento, e mecânicas como um salto extra fora das sombras e vidas infinitas dão-nos aquele jeitinho que precisamos para fazer alguns saltos impacientes ou imprudentes atingirem o ouro. Estas mãos prestáveis podem ser desativadas e reativadas no menu de pausa em qualquer ocasião por quem procura um desafio extra, apesar de estarem ativas por defeito e irem de encontro à experiência projetada pelos criadores.

Infelizmente, esta acessibilidade transita do relaxante para o entediante nas construções de níveis. Na maior parte dos níveis, os desafios de SCHiM podem ser destilados a cada pulo individual, numa falta de encadeamento entre segmentos que nem a desativação das opções de ajuda é capaz de mitigar. Os ambientes verosímeis do jogo raramente possuem um fio condutor nas suas provações, raramente contam uma história através do seu design como os melhores jogos de plataformas. Durante bastante tempo, vejo-me a prosseguir em autopiloto, sem grandes considerações sobre timings ou sobre o caminho correto, e apenas fujo da rota principal para salvar os schim perdidos opcionais. Navegar pelos níveis é prazeroso graças às físicas afinadas do nosso schim e à competência basilar no desenho das áreas mas, enquanto pincho por este mundo, adivinho a presença de uma mina de potencial por realizar.

As milhentas possibilidades para ramificar as raízes deste platformer foram sondadas pelos desenvolvedores, mas abandonadas após explorações superficiais. Gostava que tivessem apostado com maior frequência nos memoráveis níveis noturnos, em que a luz fulgurante e incondicional do sol é substituída por luzes públicas meias queimadas e faróis de carros com projeções luminosas móveis e deformadas. Gostava de ter usufruído de mais formas de manipular objetos em interações no estilo de Ghost Trick: Phantom Detective, no qual podemos erguer gruas, encher bonecos infláveis e mudar a cor dos semáforos, e que teriam sido o ingrediente perfeito para breves puzzles em que tentamos construir pontes de sombras ou extinguir fontes luminosas. E gostava, acima de tudo, que todos os elementos excelentes já presentes no jogo tivessem sido articulados em desafios de complexidade progressiva, de modo a que uma boa parte das áreas não se diluísse em borrões definidos pelo tipo de ambiente em que decorrem.

Na sua totalidade, SCHiM aparenta estar a posicionar e aproximar pacientemente as peças para um conjunto de níveis absolutamente espetacular, até este trabalho ser bruscamente interrompido pelo cair do pano da campanha. Não pensem que não existe mérito nos desafios de SCHiM; bastaria uma compilação de níveis finais explosivos para legitimar todos os níveis anteriores como um crescendo disciplinado.



Conclusão 

Chapinhando pelos níveis deslumbrantes de SCHiM, assistindo à sua história simples mas eficaz e humana, e absorvendo os seus elementos promissores e engenhosos, acreditava que encontraria neste indie uma experiência para louvar e esfregar na cara dos amigos e leitores em todas as oportunidades imagináveis. E teria encontrado, não fosse ter atingido os cŕeditos sem encontrar a cola que uniria todas estas componentes: segmentos de níveis inventivos e estruturados, capazes de espremer puzzles e desafios de plataformas empolgantes de todas estas peças, e de impedir a jogabilidade de se tornar um processo automático e, pontualmente, enfadonho.


O melhor

  • Movimentação afinada e satisfatória;
  • Componente audiovisual relaxante e deslumbrante;
  • Enquadramento narrativo simples mas maduro que eleva o jogo acima do comum platformer;
  • Linguagem visual transparente;
  • Exploração de sombras e de manipulação de objetos imaginativas...

O pior

  • ...que nunca atingem o seu potencial;
  • Pouca eficácia no estabelecimento de envolvimento do jogador, pela escassez de quebra-cabeças e de desafios complexos de plataformas.


Nota do GameForces: 7.0


Título: SCHiM
Desenvolvedores: Ewoud van der Werf, Nils Slijkerman 
Publicadora: Extra Nice
Ano: 2024

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para PC, experienciada totalmente na Steam Deck através de um código Steam gentilmente cedido pela Extra Nice.

Autor da Análise: Tiago Sá
Análise | SCHiM - Jogo de Sombras Análise | SCHiM - Jogo de Sombras Reviewed by Tiago Sá on julho 15, 2024 Rating: 5

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