Não sou o maior entusiasta da tara da indústria de videojogos com remasters, remakes e remasters dos remakes, mas convém esclarecer: há remakes e remakes. Paper Mario: The Thousand-Year Door é um 𝓡𝓮𝓶𝓪𝓴𝓮. Estamos a falar de um RPG de turnos efetivamente aprisionado por 20 anos na GameCube, o seu hardware original. Estamos a falar do segundo jogo de uma das minhas séries favoritas, ao ponto de eu lhe ter dedicado uma semana temática de artigos. E estamos a falar de uma experiência estupenda, por muitos considerado o rei dos Mario RPGs e um dos melhores clássicos do panteão da Nintendo.
Se Paper Mario 64 já nos encantava com os seus mundos e diálogos plenos de carisma, jogabilidade robusta e visual intemporal, The Thousand-Year Door refina e evolui esta base sólida e concilia-a com histórias fora-da-caixa, algo imediatamente prenunciado pela narrativa principal. Thousand-Year Door zarpa-nos para mares distantes, atracando quando o Reino Cogumelo somente existe na nossa memória e pisamos os solos de Rogueport, um antro de patifaria para todos os feitios duvidosos. Somos transportados para tão longe das convenções Mario que nem sequer é o Bowser o grande vilão da história: esse costumário antagonista está ocupado a proporcionar-nos breves mas hilariantes missões paralelas, e deixa o seu papel usual para o Sir Grodus e a sua tropa de X-Nauts. Estes novos adversários, para além de raptarem a Princess Peach (o quê? Não posso!), ambicionam reclamar o tesouro misterioso de Rogueport para alimentar os seus objetivos nefastos. Portanto, Mario deve antecipar-se a eles na busca das Crystal Stars, os artefactos mágicos necessários para escancarar a porta milenar a bloquear este lendário tesouro.
As Crystal Stars surgem atreladas a diferentes capítulos e regiões, cada qual com a sua mini-narrativa independente. E, por uma vez no milénio, não nos é recitada a rotineira lengalenga “prado, deserto, gelo, praia, floresta” e por aí fora, nem somos instados a (apenas) peregrinar de um ponto A até um ponto B. Num capítulo, desafiamos sucessivamente os lutadores de um ringue até nos sagramos campeões, investigando no entretanto os rumores misteriosos da arena; noutro, desbravamos uma longa dungeon para salvar e recrutar os seus legítimos habitantes, como se estivéssemos a formar e comandar um exército Pikmin-lite; e ainda há um episódio em que, a bordo de um comboio, interrogamos os passageiros e vasculhamos as suas cabinas para deslindar os culpados de pequenos delitos, em micro-investigações estilo Hercule Poirot curadas para todas as idades! Thousand-Year Door nunca incide na mesma ideia duas vezes e os seus capítulos prestigiantes, que noutros RPGs seriam a exceção, afirmam-se como a norma nesta aventura de infindável criatividade e diversão.
O que estas narrativas carecem em emocionalidade e complexidade, em comparação com outros RPGs, compensam em larga medida com os diálogos humorísticos e charme característicos da série. Personagens como Flavian e Pennington dominam a sala nas suas cinemáticas, e NPCs comuns como a criança fã de Fire Emblem e os corvos consternados com o esgotamento de combustíveis fósseis reforçam a minha compulsão de descobrir o que todos os habitantes deste mundo têm para contar. Existem ainda numerosos detalhes que a Intelligent Systems salpicou pela experiência que exponenciam as suas memorabilidade e singularidade, seja na aventura que Luigi conduz em paralelo à nossa e que ele nos narra aos poucos (claramente sem acrescentar pózinhos para soar mais possante!), seja no enquadramento dos combates num palco de teatro, onde o cenário pode desabar e os expectadores podem intervir e impactar a direção dos confrontos!
Temos até a sorte de, ocasionalmente, uma personagem juntar-se à missão de Mario e acompanhá-lo durante o resto da aventura. Para além de servirem como a voz dos heróis nos diálogos (visto que Mario só solta oh yeahs e hmhms), estes parceiros são fundamentais para a progressão na exploração. Todos possuem ações próprias nas batalhas e uma ação especial no terreno, e tanto as habilidades dos parceiros como as do Mario são aproveitadas até ao tutano nos imensos puzzles de qualidade que integram as regiões e dungeons. E antes de as nossas ações esgotarem o seu potencial, um novo companheiro ou melhoria é introduzido na Hora H para injetar uma lufada de ar fresco nos puzzles, numa cadência cirúrgica que impossibilita que os quebra-cabeças se estagnem.
Este espírito de constante revigoração estende-se ao combate, empolgante do início ao fim graças à prata da casa dos RPGs de Mario: os Action Commands. Durante os combates, podemos escolher entre ataques normais, skills mais poderosas e itens, e a maximização do efeito das nossas investidas ou bloqueios passa pela superação de “minijogos” de timing, uma tarefa constantemente revitalizada pelas expansões da nossa gama de ataques, o recrutamento de novos parceiros e a introdução de novos inimigos.
Se forem aselhas nestes desafios, não é o fim do mundo: a dificuldade global da campanha é bastante diminuta, e aposto que verão mais vezes o ecrã de Game Over por escolhas engraçadinhas nos diálogos da história do que por derrotas sob os holofotes. Noutro título, a baixa dificuldade acarretaria levantar um austero cartão amarelo à jogabilidade, mas não consigo erguê-lo contra Thousand-Year Door. Não só é positivamente viciante e intrinsecamente recompensante dominar os Action Commands (especialmente os árduos Superguards, com timings intransigentes mas potencial para contra-ataques), mas o combate também desperta e satisfaz a minha ambição de levar o jogo aos seus limites.
Do mesmo modo que descargas de serotonina percorriam o meu corpo com os Chain Attacks de 8 dígitos em Xenoblade Chronicles 3 ou quando deslizava à margem dos desafios de Blue Fire, em Thousand-Year Door derivo satisfação incomensurável da impiedosa obliteração dos oponentes. Mais do que simplesmente superar os confrontos, é euforizante despachar inimigos poderosos antes de lhes dar uma oportunidade de atacar, ou calar à marretada um boss microssegundos após este desdenhar prepotentemente os heróis deste RPG e declarar que só vimos uma fração do seu verdadeiro poder!
As possibilidades estratégicas por trás desta catarse passam menos pelos ataques escolhidos no campo de batalha, onde o processo de decisão é tipicamente linear, e mais pelas dezenas de Badges equipáveis, acessórios com os quais personalizamos os atributos de Mario e companhia. Opções como poder trocar o nosso parceiro sem terminar o turno ou usufruir de incrementos estratosféricos do poder de dano quando Mario está nas portas da morte são apenas duas das potencialidades de otimização que serviram como engodo para que, sempre que tinha de optar entre melhorar os pontos de vida, os pontos para skills, ou as vagas para Badges, só existisse realmente uma opção certa. Em contrapartida, vocês poderão optar por outras estratégias igualmente ousadas, ou simplesmente pelas escolhas que mais vos facilitam a vida; a beleza deste sistema está precisamente em conseguir servir e beneficiar qualquer jogador.
Em suma, a jogabilidade de The Thousand-Year Door revela-se praticamente irrepreensível. Porém, cometi uma batota para poder formular este elogio: ignorei a “não-jogabilidade” que se interpõe entre os combates prazerosos e os puzzles recompensantes, a alcunha carinhosa que dei às doses fastidiosas de backtracking que permeiam a campanha.
A título de exemplo, imaginem que o Capítulo 5 do jogo se passa na Avenida da Boavista. Um amigo nosso encontra-se na Casa da Música e outro no Castelo do Queijo e, entre favores e contra-favores que eles nos pedem, somos obrigados a deslocar-nos 5 vezes a pé entre eles. É agoniante, é despropositado, e só nos deixa a ponderar se devemos procurar melhores companhias. Se na vida real podemos mandar estes amigos às favas, em The Thousand-Year Door há-que baixar a cabeça e cumprir estas tarefas sisifianas, agarrando-nos à esperança de o próximo momento de excelência estar ao virar da esquina.
E, ainda assim, enquanto revisitava todas as regiões em busca do General White no Capítulo 7, só dava graças por não estar a jogar na GameCube. De facto, o remake adiciona ou reposiciona atalhos entre as várias áreas para agilizar a travessia do mundo e deste modo minimiza os trechos monótonos. O que sobrou? As instâncias microscopicamente entrelaçadas no DNA do jogo, infelizmente ainda bastantes. Pessoalmente, preferiria que alguns elos destas cadeias fossem alterados ou pura e simplesmente removidos em prol de uma aventura inteiramente deleitosa, em que só realizaria backtracking de livre e espontânea vontade em busca dos colectáveis opcionais, mas entendo porque é que a Nintendo optou por uma abordagem conservadora.
O que não entendo é a Nintendo ter mantido imensos desperdícios de tempo desnecessários: por exemplo, sempre que trocamos de parceiro no novo e conveniente menu rápido, precisamos de aguardar pelo fim da demorada animação para nos movermos novamente; além disso, as cinemáticas... Ui, as cinemáticas! Antes de iniciarem, o Mario precisa de se posicionar cautelosamente a 30 centímetrozinhos do interlocutor, e podem crer que estas não terminarão sem acompanharmos cada passinho de tartaruga das personagens em saída de cena (estou a olhar para ti, Jolene!). O cúmulo é terem adicionado ainda mais elementos de morosidade: em batalha, o enchimento da barra de Star Power atrasa congela momentaneamente a ação após cada Action Command superado e, horror dos horrores, não podemos avançar rapidamente quaisquer caixas de texto, numa forma de tortura desenhada à medida para leitores rápidos. Pode não parecer um problema grave mas, se estas situações fossem grãos de areia numa ampulheta, nem poderiam medir o tempo de tão cheias que estariam as suas âmbulas!
Olhando pela positiva, as restantes mudanças empreendidas na campanha são uma benesse, melhorando o jogo sem o adulterar ou censurar. Comecemos pela apresentação: todas as regiões foram recriadas de raiz com novos detalhes e um investimento mais assertivo na estética de papel, bem como belíssimos efeitos luminosos (talvez demasiado, em locais como Rogueport). Por seu lado, as personagens receberam novas animações, que aumentam a sua expressividade em resposta aos eventos da história. O resultado final é de cortar a respiração, com ambientes chamativos que se aproximam da estética de diorama dos sucessores sem comprometer a identidade visual original. Apenas uma concessão foi feita: a taxa de fotogramas foi cortada de 60FPS para 30FPS, uma redução lastimável mas perdoável num jogo deste gênero.
A sonoplastia não fica nada atrás: as músicas foram completamente recriadas, usando instrumentação que as aproximam de Origami King. Mais do que simplesmente melhorar o que já existia, Intelligent Systems por um lado aumentou a duração de temas clássicos com novas melodias, e por outro introduziu faixas inéditas que tornam a banda sonora mais exaustiva e completa: como as variações do tema de batalha de cada capítulo, um charmoso callback a Paper Mario 64, e as músicas únicas adicionadas a certos bosses. O resultado final é excelente e nunca dei por mim a recorrer à badge que ativa a banda sonora original, mesmo que em algumas comparações as versões originais das músicas possam sair por cima (particularmente temas etéreos, como Boggly Woods e Poshley Sanctum). Os efeitos sonoros foram igualmente expandidos, sendo a minha novidade favorita os sons únicos estilo Banjo-Kazooie conferidos às falas de cada personagem, dando mais vida aos textos e permitindo-nos conhecer a voz de intervenientes como Flurry e Beldam!
O argumento também recebeu uma demão que o aproxima da versão japonesa original e o atualiza para a realidade atual, positiva como um todo (ou, pelo menos, nas diferenças que notei). Mas não sem os seus altos e baixos: no seu pior, remove um piropo agressivo que representava na perfeição a putrefação vigente em Rogueport; no seu melhor, restaura e melhora a caracterização de Vivian, explicando as suas quezílias com as irmãs e fornecendo melhor substanciação ao final da sua história.
Outras adições menores incluem, notoriamente, galerias de artes conceituais e de músicas, vários sistemas de dicas, e o aumento do limite de moedas, entre muitas, muitas outras novidades. São mais do que eu consigo elencar ou sequer discriminar após anos sem reviver Thousand-Year Door. Esta é uma remodelação mesmo ambiciosa deste clássico e, se jogaram a versão original e conseguirem ignorar as lacunas que expus, sentir-se-ão em casa no remake. Na minha lista de desejos, apenas restam um melhor sistema de ajuda na busca de colectáveis, mais espaços de inventário (para além dos já adicionados), a opção de ativar várias sidequests em simultâneo e, claro, conteúdo novo, para além dos dois bosses opcionais extra. Posso apreciar o nível de desafio destes oponentes, mas ainda sonhava com uma nova história ou epílogo para saciar a fome de mais Paper Mario clássico (o Paper Luigi: The Marvelous Compass estava mesmo à mão, Intelligent Systems!).
Conclusão
20 anos após o seu lançamento, Paper Mario: The Thousand-Year mantém-se uma brilhante surpresa: é surpreendente o quanto as suas peripécias divergem entre si e dos padrões de Mario, é surpreendente o quanto o combate impressiona depois de tanto tempo, e é surpreendente como a aventura é pura diversão em todos os passos dados.
Bem, não todos; infelizmente, ainda existem umas boas doses de backtracking a prejudicar a campanha. Mas a verdade é que neste remake, que traz uma completa e bela remodelação audiovisual e imensos ajustes à experiência, um corte comedido destes desperdícios de tempo é a maior lacuna que podemos apontar.
O melhor
- Variedade de capítulos inigualada no género;
- Combate empolgante e recompensante;
- Puzzles ambientais de elevada qualidade;
- Elevado potencial de personalização com as badges;
- Esplendorosa renovação audiovisual.
O pior
- Quantidade excessiva de backtracking;
- Alguns ajustes deletérios para a fluidez da ação;
- Escassez de novos conteúdos.
Nota do GameForces: 9.0
Desenvolvedora: Intelligent Systems
Ano: 2004-2024
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Nintendo Portugal.
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