Reflexão | Colocar os Iihhs nos Pontos - Dia de GameForces 2024


 No dia 11 de maio, celebramos o Dia de GameForces, uma tradição que inauguramos em 2023. Nesta data, olhamos para aspetos conceptuais dos videojogos e/ou da cobertura de videojogos, apoiando-nos no nosso trabalho passado para procurar aprimorar o nosso futuro!


No processo de redação das análises, não há etapa mais ingrata do que a deliberação da classificação final. Afunilar uma apreciação holística de um jogo, estabelecida no corpo da análise ao longo de centenas ou milhares de palavras, numa classificação sintética e estrita envolve um rol de desafios, concessões e reducionismos inquietantes para todos os que refletem sobre videojogos.

Pouco adianta entrar em lamúrias; por mais dificuldades inultrapassáveis que a atribuição da nota implique, estas pontuações e os seus méritos são demasiado valiosos para os jogadores para serem excomungados. Já li imensos comentários de cibernautas do estilo “A IGN só deu 8 a Tears of the Kingdom?”, mas pouquíssimos a torcer o nariz e questionar “A IGN realmente equipara TotK a uma DLC?”.

Ainda assim, aquando da leitura deste veredito, há que manter presentes as abundantes dúvidas inerentes ao processo de atribuição de classificações. Longe de ser uma ciência exata, esta tarefa deixou-nos ocasionalmente consternados e a revirarmo-nos na cama após o apito final do processo de escrita. Neste Dia de GameForces, debruçar-nos-emos numa reflexão de introdução a este tema cabeludo em que, com a ajuda de testemunhos dos membros do GameForces, passamos pelos nossos grandes dilemas na pontuação de análises!

Para arrancarmos a discussão, lancemos ao ar aquela perguntinha retórica que tantas teóricas inicia na faculdade: “Afinal, o que é a nota?”. Podemos estar a referir-nos a adjetivos, ou a emoji mais ou menos sorridentes mas, no caso do GameForces e da maioria dos sites, empregamos um sistema numérico para classificar os jogos que analisamos. Quando um dos nossos redatores assume a incumbência de esmiuçar uma experiência, já sabe que eventualmente olhará para a segunda fila do seu teclado e escolherá o dígito árabe que melhor assenta na lapela do texto. Significará isso que a pontuação é um resumo ou uma alternativa ao corpo da análise?

Carlos Silva: Não sou apologista de que uma nota, por si própria, seja uma reflexão de uma análise. Ao invés, prefiro considerar a nota atribuída no final de um texto mais como “ponto final parágrafo”, do que propriamente um atalho para descobrir a qualidade de um jogo. Quantificar uma experiência através de uma entidade tão objetiva como um número (ou letra, ou estrelas!) é diminuitivo, na melhor das hipóteses, do exercício de ponderação que é redigir um texto sobre aquilo que determinado videojogo nos transmite. A nota é, portanto, e na minha opinião, uma consequência de um exercício devidamente introduzido, argumentado e concluído durante todo o texto.

Da posição do Carlos, depreendo que, no meio jornalístico, a nota da análise tem obrigatoriamente de existir na dependência de extensa e elucidativa argumentação. Ao encerrarem duas expressões da mesma perspetiva, o texto e a nota surgem fatalmente interconectados, de tal forma que não é infrequente ambos condicionarem-se mutuamente, carecendo de finos ajustes até se refletirem cristalinamente.

Não romantizem esta relação: a situação enquadra-se numa parasitose, não numa simbiose. Pode haver crítica sem classificação, mas nunca classificação sem sustentação. A gradação escolhida, conclusiva e derradeira em si mesma, apenas nos providencia uma aproximação descontextualizada da qualidade do jogo. Na crítica especializada, nunca pode nascer demarcada do restante texto, uma teia finamente articulada e encadeada de informações, críticas e elogios que esclarece as subtilezas que distinguem os milhentos títulos que recebem um 7 ou um 8.

Até porque, o que significa dar a um jogo um 7 ou 8? O que é que representam exatamente os valores da escala? À primeira vista, a sua interpretação é intuitiva: um jogo que receba 1 é o pior concebível, um que receba 10 será o melhor, e as restantes posições são pontos de progressão entre os extremos. Mas pior, melhor, em quê? 

Certamente existem cibernautas que absorvem as notas como uma avaliação objetiva da qualidade do título, como se de uma medição exata se tratasse. Isso é simplesmente impossível. Não há uma régua, balança ou termómetro que encostemos às têmporas de um jogo para dele extrair uma pontuação isenta; o juízo é elaborado com base na experiência individual de um dado observador.

Aliás, declarar que estas produções interativas podem ser graduadas objetivamente suscitaria um leque extenso de postulados nefastos. Desacreditaria a abundância de críticos por todo o mundo, dado que a palavra do autor mais “rigoroso” seria final. Subentenderia que competência técnica e valor lúdico e artístico são sobreponíveis, uma noção que invalidaria as críticas de falta de inovação que, mais recentemente, Carlos Cabrita teceu a Rise of the Ronin e que eu, em 2021, disparei desenfreadamente contra Metroid Dread.

E, ainda, exporia mais fragilidades ao sistema de pontuações do que as que já apresenta. A título de exemplo, olhemos para The Legend of Zelda: Breath of the Wild. Aquando do seu lançamento, a crítica foi quase unânime na atribuição de notas máximas ao primeiro Zelda 3D em mundo aberto. Seis anos mais tarde, a sequência Tears of the Kingdom, embora aclamada, foi inferiorizada por uma porção dos jogadores por derivar do predecessor o seu mundo, sistema de físicas, estilo gráfico, etc..

Esta reação seria ilógica se a escrita de uma análise consistisse num exercício puramente objetivo e tivesse como objeto de estudo um jogo intemporal: se Breath of the Wild é um 10/10, a sua sequência direta, que ostenta uma expansão significativa de conteúdo, só poderia receber uma pontuação menor se o aglomerado de elementos que adiciona fosse inferior ao que substitui. Por outro lado, na leitura das notas máximas dadas pela crítica às aventuras, esta visão pode resultar em diferentes interpretações: ou ambos os 10/10 eram merecidos e as melhorias presentes em Tears of the Kingdom foram supérfluas, ou incontáveis redatores tinham cometido um lapso substancial de julgamento em 2017 e dado uma avaliação hiperbolizada à aventura de despedida da Wii U. O mesmo raciocínio cairia no ridículo em remakes conservadores: os críticos do remake de Shadow of the Colossus (2018) ver-se-iam prisioneiros da pontuação que deram a esta jornada em 2005, com as suas correntes apertadas a permitir somente pequenos reajustes com base nas atualizações gráficas e de controlos.

Consequentemente, a classificação não pode definir tetos rígidos e constantes na qualidade dos videojogos. A receção de uma experiência está sempre subordinada ao paradigma vigente no mundo dos videojogos quando é lançada ou vivenciada. Está dependente do nível de apreciação da sua fórmula num microscópico ponto do contínuo temporal, não dentro da comunidade de jogadores em abstrato, mas na mutável figura individual de carne e osso que efetivamente a analisa. Portanto, as pontuações que atribuímos devem ser interpretadas como diferentes posições no espetro subjetivo de potencial lúdico de um jogo e no seu nível de recomendação a outros jogadores, conforme a experiência pessoal do redator que a anuncia (uma crença motriz na elaboração dos nossos critérios de Pontuações das Análises).

Filipe Mesquita: O que fazer quando sai um novo jogo de um franchise que acompanhamos afincadamente desde tenra idade? É um dilema com o qual lido quase todos os anos, sendo enorme fã da série Pokémon. Por um lado, um conhecimento tão profundo de todo o franchise permite-me avaliar bem a evolução de cada novo título. Por outro, a atribuição de pesos a cada vertente do jogo torna-se mais complicada quando a fórmula leva um abanão entusiasmante.

 A mais recente geração de Pokémon foi uma verdadeira lufada de ar fresco para uma série cuja fórmula cheirava cada vez mais a bafio. No entanto, os problemas técnicos foram tantos, tão danosos e tão ignorados pelos produtores que não conseguia passar muito tempo em Paldea sem ter de ir a um oftalmologista. Um jogo de extremos, no qual a fórmula foi aperfeiçoada como nunca imaginei ser possível, mas tão horrivelmente mal otimizado que me dava dores de cabeça. Um jogo no qual apenas a minha história pessoal e o reconhecimento dos méritos face ao passado me permitiram retirar tanto prazer da experiência e, como tal, avaliar o jogo muito mais positivamente do que qualquer pessoa “normal” seria capaz.

Foi a dedicação de décadas do Filipe a Pokémon que valeu a Pokémon Scarlet/Violet um enaltecimento entusiástico pelo seu salto em relação aos predecessores, num título problemático em que novatos poderiam não olhar além das grotescas falhas técnicas. Analogamente, quando analisei Pikmin 4, fui incapaz de ir além de um 8.5 precisamente por ser um acérrimo fã da franchise. Se esta tivesse sido a minha introdução aos títulos de estratégia em tempo real da Nintendo, teria ficado deslumbrado com a jogabilidade refinada, a variedade de opções estratégicas e a estonteante quantidade e qualidade de conteúdo, relegando a baixa dificuldade a uma nota de rodapé; contudo, tendo eu adorado Pikmin 1, 2 e 3 pelo combate desafiante e otimização de recordes, a queda vertiginosa de dificuldade converteu-se num flagrante ponto de contenção.

O Filipe coloca em cima da mesa outra questão pivotal: a ponderação das múltiplas componentes do título. Gosto de pensar na análise como um processo de metamorfose do objetivo no subjetivo: partimos da exposição informativa dos fundamentos do jogo, para a exploração das suas consequências na nossa diversão, para a sua concretização numa conclusão e classificação. O problema é que os videojogos são intrincados: a nossa crítica precisa de incorporar componente audiovisual, jogabilidade, performance, inovação e muito mais numa só resenha, e é raríssimo todas estas valências andarem de mãos dadas.

O que fazemos quando existem contrastes chocantes entre a componente lúdica e técnica, como no caso de Pokémon Scarlet e Pokémon Violet? Uma solução fácil seria determinar a nota do jogo através da média das notas das componentes; todavia, essa operação aritmética não só reduziria o título à fria soma das suas partes, mas também implicaria que todas contribuem equitativamente para a nossa experiência.

Carlos Silva: O título cuja análise mais tive dificuldade em finalizar com a nota atribuída (lá está, o tal “ponto final parágrafo”), foi Life is Strange 2. Apesar de não ter o mesmo reconhecimento do primeiro jogo da série, não tenho problema algum em afirmar que esta experiência foi uma das mais marcantes da última década para mim. Muito devido à mensagem transmitida pelo jogo, como pelo seu setting; tudo ressoou em mim.  Neste caso foi necessário um esforço consciente em tentar objetivar o melhor possível algo que, para mim, foi tão subjetivo. Foi neste ingrato exercício refletivo que me apercebi de diversos problemas que o jogo tinha e que me fizeram no final ter de optar por uma nota abaixo daquela que contava dar no início. Neste caso em particular queria dar um 10 (o segundo na minha carreira de redactor!), mas não poderia em plenitude de consciência atribuí-lo. Esta “obrigação moral” foi efetivamente um dos momentos difíceis que me levantou muitas dificuldades em aceitar a análise como finalizada.

O Carlos foi confrontado com uma difícil decisão da mesma ordem: o desejo de agraciar os temas e enredo de Life is Strange 2 com a nota máxima foi contrariado pela perceção clara de que um 10/10 não pode ser concedido de mão beijada. Esta honra surge carregada de uma pesada bagagem de expectativas, que seriam defraudadas se problemas como a inexistência de um elemento mecânico diferenciador e alguns soluços de pacing fossem ignorados na pontuação. Foi deduzindo pontos por estes percalços que o Carlos assegurou que a globalidade da experiência, em todos os seus altos e baixos, sairia devidamente representada no veredito.

Não foi esta a filosofia que adotei quando galardoei Tears of the Kingdom com um 10/10. Apesar de reconhecer defeitos como uma história que desvaloriza os eventos do predecessor e se adapta insatisfatoriamente à estrutura da experiência, desconsiderei-os em função dos libertadores sentimentos de experimentação e imersão que me dominaram nesta passagem por Hyrule. Defendi a primazia da minha diversão, numa pontuação que reflete fidedignamente o meu nível de recomendação do jogo, mas que sai fragilizada pela sua seletividade e pela idealização do título. Duas abordagens antagónicas a este obstáculo, ambas com os seus prós e contras… ou não?

A partir de que volume de defeitos teria de dar a mão à palmatória e penalizar Tears of the Kingdom? Ainda que indefinido, existe certamente um threshold de gravidade que me compeliria a fazer cedências na classificação, em que as lacunas seriam impossíveis de varrer para debaixo do tapete.

Afinal, já passei por esta situação recentemente, com os WarioWare da Nintendo Switch. Pela sua excentricidade e variedade de estilos de jogo, prefiro de longe a jogabilidade base de WarioWare: Move It! à do predecessor imediato. Contudo, face às suas paupérrimas ofertas de conteúdo extra, foi WarioWare: Get it Together! que levou o ouro para casa. A jogabilidade que mais me diverte, sancionada em favorecimento do pacote mais robusto e vanguardista. Notem que, aqui, o meu descontentamento não se fermentou do julgamento de um só título, mas da justaposição de duas pontuações distintas.

Filipe Mesquita: Um problema com o qual me deparo muito quando jogo um título, sobretudo quando este ainda está quentinho, acabado de sair do forno, é o da otimização. Problemas de otimização são coisas objetivas, certo? Mas, contudo, no entanto, porém, não obstante… há jogos em que isto me incomoda muitíssimo mais do que noutros. Olhemos para dois exemplos: Control e Jedi: Survivor. Dois jogos - em plataformas diferentes, até -, com algo em comum: uma otimização absolutamente atroz no dia em que foram lançados. No entanto, atribuí a Control e a Survivor duas notas bem diferentes, apesar do nível de “desotimização” ser semelhante.

A verdade, é que é muito difícil avaliar objetivamente estes problemas, mesmo quando eles são bastante objetivos por natureza. Isto porque o modo como prejudicam a experiência de jogo é sempre subjetiva. Na altura, os problemas de Control irritaram-me por sentir que prejudicava muito a fluidez que o jogo necessitava para ser verdadeiramente divertido. Algo que não aconteceu com Survivor, cuja imersão na história ligação emocional às personagens nunca foi afetado pelo constante desacelerar da imagem quando um sabre de luz entrava em ação.

Isto tudo para dizer, atribuir notas não é algo assim tão simples. A nossa história com a produtora, com o franchise ou com o jogo no seu todo pode muito bem levar-nos a ter dois pesos, duas medidas. Mesmo quando os problemas que apresentam são, objetivamente, muitíssimo equivalentes.

Num universo tão eclético como o dos videojogos, e com personalidades tão diversas a girá-los entre os dedos, a mesma ponderação nunca é empregue duas vezes. As quedas da taxa de fotogramas que seriam inaceitáveis num jogo de ação são reduzidas ao zumbido levemente irritante de um mosquito em simuladores de quinta. Até a jogabilidade, o Santo Graal da interatividade, é relegada a uma decoração de cenário ou até escorraçada pelas traseiras nas encenações das visual novels. Cada jogo tem de ser pesado numa balança altamente personalizada, numa tarefa que só pode fazer sentido se visar um critério central tão pleomórfico e flexível como o potencial lúdico de cada experiência.

Esta noção coloca em causa um grande mérito das classificações: o valor de comparabilidade. Se usamos um programa de lavagem diferente em toda a santa análise, não é descabido comparar os números que encerram as resenhas? Nem por sombras diverti-me mais em Everybody 1-2 Switch! (5.0) do que em Splatoon 3: Side Order (4.5); a diferença entre os vereditos indicaria o contrário.

Mas também, que diferença mixuruca! Estamos a falar de dois jogos separados por meio valor, o menor nível de discriminação possível nas nossas análises. Estivessem Bohemian Killing (4.0) e Super Mario Bros. Wonder (9.5) nos pratos da balança, não levantaríamos nenhuma reticência, interrogação, ou asterisco. Quanto maior a discrepância nas pontuações de dois jogos, mais robustas são as conclusões (genéricas) que podemos extrapolar sobre a sua qualidade relativa.

Em alternativa, mediante o reconhecimento de que o problema reside na disparidade de pesos e contrapesos, podemos optar por apertar o nosso escopo de comparação. Justapondo títulos do mesmo gênero, subgênero, ou até da mesma série, é expectável que a receita das análises se aproxime, e que o mais pequeno incremento na classificação seja significativo...

Filipe Martins: Falar de atribuir uma nota a um jogo remete o meu pensamento para situações controversas, em que a decisão de dar uma nota a um titulo comparativamente a outro seria uma situação delicada. Para esta temática, inclusive, pensei em abordar videojogos que têm um lugar especial na minha vida... Falo-vos de Final Fantasy, mais precisamente dos títulos que até ao momento fazem parte do Remake do 7.

Mas, para entrar nesta conversa, vou fazer um pouco de batota. Porque o Carlos, ao cobrir tanto o primeiro título como o Rebirth, protegeu-me de escolher as suas pontuações e de cair no conflito interno que decerto teria. Pois, se acho Rebirth o melhor título em diversos aspetos, daria uma melhor pontuação final ao primeiro.

Enquanto Rebirth consegue adicionar novidades como o mundo aberto e uma narrativa bastante mais pragmática e densa que foge do título original e prende os jogadores desde o inicio, o "Remake" ganha com o fator "novidade" - seja pela originalidade de pegar na trama do original e dar-lhe algumas nuances diferentes, na reinvenção do uso de alguns componentes do jogo, e até mesmo por recriar e remisturar os arranjos musicais sem perder o encanto que do longínquo ano de 1997. Numa altura em que parece que só se ouve falar de Remasters e Remakes (e até Remasters de Remakes!), sinto que Final Fantasy 7 Remake fez realmente justiça ao termo da palavra, ou pelo menos, à minha ideia do que um Remake deve ser.

Quer isso dizer que eu, dando maior nota ao primeiro título, elejo esse o meu favorito? Não! O conflito acima mencionado passa por aí, não sou capaz de tomar essa decisão. Há coisas que gosto mais no primeiro, e outras que gosto mais no segundo, e nem a nota nem a minha escolha do melhor título são iguais à minha preferência. São dois excelentes títulos e recomendo-os vivamente, mesmo para quem nunca jogou o original!

E pronto, lá entrou o Filipe Martins a pés juntos para baralhar tudo: até com duas entradas consecutivas da mesma série as comparações gemem por todas as engrenagens. Chegou a hora de erguer a bandeira branca: não cabe aos leitores adivinhar como é que procedemos à calibração da balança, e não é exequível que os trabalhos do redator sustentem comparações com infinitos títulos, quanto mais com os jogos que ainda verão a luz do dia.

...Mas isso não nos impede de tentar. Transparência, caros leitores, é a chave da questão. Enquanto autor, posso ir além de explicitar a minha opinião de cada componente do jogo, e clarificar o seu impacto na jornada pelo título. Se a inovação ou imersão nulifica o peso dos defeitos numa pontuação, posso declarar isso tintim por tintim no texto. Até a estrutura do texto pode ser retirada do coldre e empunhada: dando mais tempo de antena a determinadas componentes conforme a sua importância relativa, espero criar um esboço sinestésico da minha apreciação global da experiência. É por desígnio que, frequentemente, passo ao lado da dimensão sonora ou da performance nas minhas análises: se uma vertente for competente e não me aquecer nem arrefecer, mencioná-la apenas serviria para a riscar da lista de afazeres.

E, assim, retornamos à importância do corpo da análise enquanto alicerce da classificação e terminamos uma viagem de circumnavegação em torno do tema. Apesar de estes dilemas se alojarem como espinhas na minha garganta, desvendo aqui uma mais-valia da graduação de jogos: o corpo da análise pode ser concluído apenas com apreciações fragmentadas e independentes de cada elementozinho do título, mas a eleição de uma nota coage-nos a integrá-las e a entreter estas dúvidas, a encará-las olhos nos olhos e responder, sem rodeios ou indefinições, em qual posição exata do espetro de qualidade posicionaremos definitivamente as experiências que versamos.

É parcialmente por isso que vejo nos sistemas qualitativos de pontuação uma admissão de comodismo, cobardia ou preguiça. A estratificação por adjetivos subjetivos, que em conversação corrente se sobrepõem como no mais estreito diagrama de Venn concebível, salta todo este processo e rouba ao veredito o poder discriminativo e a capacidade de acrescentar informação ao texto que o precede. A natureza vincada que tanto me atormenta na classificação é, ao mesmo tempo, aquilo que a legitima.

Como discutimos, o resultado nem sempre é satisfatório; contudo, às vezes, é puramente grotesco. Se colocarem o sistema gradativo sob uma prensa industrial, e aumentarem sem dó nem piedade a sua pressão… ele racha por todo o lado – Dá-lhe, Filipe!

Filipe Mesquita: É quase inevitável sentirmo-nos, a dada altura na vida, atraídos pelo abismo. Sentir uma conexão com algo tão mau, tão mau, tão mau… que retiramos prazer da experiência. No mundo dos videojogos, foi exatamente o que senti com Deadly Premonition: Origins. O mundo era feíssimo, as personagens eram estereotipicamente más, a exploração do mundo aberto era atroz, os diálogos eram risíveis, e a jogabilidade de combate era uma imitação rasca de Resident Evil 4. No entanto, diverti-me à brava com o jogo. Assim que mergulhei a fundo no mistério do jogo, mal podia esperar para iniciar a próxima conversa neurótica ou para descobrir a próxima prova que tornava tudo ainda mais conturbado. É um daqueles jogos em que uma avaliação final de 1 ou de 10 me faria todo o sentido, não questionaria qualquer um desses julgamentos. Os videojogos são sempre mais do que a soma das suas partes, e atribuir notas finais de uma avaliação é muito mais do que por certos ou errados numa checklist. Sobretudo quando algo tão fora da caixa como este jogo nos cai nas mãos.

Quando uma mola é esticada até se confundir com um fio de esparguete, são perdidas as qualidades elásticas no centro da sua serventia; quando um jogo extremamente inconsistente ou paradoxal nas suas múltiplas facetas puxa a escala em todas as direções, esta tomba flacidamente no chão quando tentamos cinturar a experiência com uma nota. Se todas as posições do espetro são adequadas para uma mesma análise, dificilmente qualquer delas é decisiva; a pontuação transforma-se uma peneira com mais buracos do que rede.

Com este exemplo, dirijo-vos um último grito de alerta. As classificações são isto, são aquilo e aqueloutro, e um dos milhentos rótulos que lhes podemos dar é um logro. Os números são exatos, a matemática é uma ciência fechada e a física e química apoiam-se neles para estimarem a mais precisa descrição das leis do Cosmos… Porém, as notas das análises usam a austeridade dos números para codificar o subjetivo; vendem sumo de groselha em jarro de sangria. E isso vê-se demasiado bem nesta reflexão: sempre que tomamos lanço para tirar os pés de uma poça, chapinhamos logo para outra. Tenham espírito crítico, e pensem duas vezes antes de galoparem pelas publicações para chegarem à nota. Extraiam das pontuações o proveito que as perpetuam, mas não sejam vítimas das ciladas espinhosas que elas necessariamente vos escondem.

Reflexão | Colocar os Iihhs nos Pontos - Dia de GameForces 2024 Reflexão | Colocar os Iihhs nos Pontos - Dia de GameForces 2024 Reviewed by Tiago Sá on maio 11, 2024 Rating: 5

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