Análise | Tales of Kenzera: Zau – A Vã Luta Contra o Luto


Experienciar o primeiríssimo jogo de um estúdio formado há poucos anos é algo fascinante. Um novo estúdio é uma tela completamente em branco, nunca sabemos bem o que esperar que saia dali, mesmo quando nos deparamos com as imagens e os trailers do seu primeiro jogo. É sempre entusiasmante saber de uma nova equipa de produção, sobretudo olhando para a atual instabilidade da indústria dos jogos. Novas visões, ideias próprias e, esperamos todos, ofertas diferentes das que costumamos encontrar na indústria – é isto que um novo estúdio se propõe a oferecer. E neste caso, é o que Tales of Kenzera: Zau se propõe a oferecer. Será este um conto que quererei partilhar com outros, ou começarei já a fazer o luto por este jovem estúdio?


Em Tales of Kenzera: Zau vemos um jovem de luto pelo falecimento do seu pai, que deixou para trás um livro que escreveu para ajudar o seu filho a lidar com a perda. Com a dor ainda à flor da pele, o jovem pega no livro e mergulha na história de Zau, um jovem xamã a passar pelo seu próprio processo de luto, que procura Kalunga, o deus da morte. Ao encontrá-lo, Zau propõe um negócio: apaziguar e oferecer três espíritos monstruosos que estão a causar o caos pelas terras de Kenzera em troca do regresso do seu pai à vida. E assim, acompanhamos Zau pelas várias regiões deste mundo inspirado em histórias mitológicas Bantu, ajudando-o a encontrar e conquistar os perigos que tem pela frente, enquanto lida com a raiva, o medo e a tristeza pela sua perda.

Não há elogios o suficiente que possa usar para qualificar toda a história deste jogo. O modo como vemos Zau lidar com o luto é uma experiência incrivelmente tocante e emocional. As pequenas histórias que vai encontrando pelas terras de Kenzera espelham muito bem o que o protagonista está a vivenciar, e ajudam a tornar a compreensão do seu processo de luto muito mais relacionável. E todo o contexto de mitologia africana Bantu confere a esta narrativa profundamente humana uma pintura única, memorável e impactante. Em poucas palavras, estamos perante uma história fantástica, e imagino que qualquer pessoa que já tenha tido o infortúnio de passar por uma experiência de luto se consiga identificar com muito do que esta narrativa apresenta. Ainda que o twist final seja relativamente fácil de antecipar, tudo em torno dessa reviravolta está tão bem escrito, que senti o impacto todo na mesma.


Agora, como é que esta história tão, tão profunda se apresenta num videojogo? Como um metroidvania 2.5D. E antes de olhar para as várias vertentes deste jogo, deixem-me só dar uma pequena nota: não havia melhor género (ou subgénero, para os mais picuinhas) para servir de veículo desta história. Seguir em frente, encontrar obstáculos que parecem inultrapassáveis, arranjar um modo de crescer ao ponto de ser capaz de dar a volta a esse obstáculo – esta é a essência de um metroidvania. E é igualmente a essência de um processo de luto: seguir com a vida, encontrar momentos em que a dor parece impossível de gerir, encontrar forças para superar esses momentos titanicamente difíceis, e continuar a viver. O paralelismo entre o progresso no jogo e no luto de Zau está estupendamente bem conseguido.

Olhando finalmente para os elementos de jogo, há também aqui muito para adorar. O mapa é amplo, as diferentes áreas apresentam cenários com grande variabilidade entre si, e está repleto de esconderijos e secções ocultas para descobrir. A navegação é sempre prazerosa. É sempre divertido saltar entre plataformas, trepar paredes, ou esquivarmo-nos de perigos ambientais que ameaçam pôr um fim prematuro a Zau e despoletar, certamente, outros processos de luto. E com o desbloquear de novas habilidades – o que acontece a um ritmo muito bom -, a navegação e a resolução de puzzles vai ficando mais, e mais divertida.

Como seria de esperar, o mundo de Tales of Kenzera: Zau está repleto de segredos. Desde pequenos pedaços de lore que aprofundam a história das terras que atravessamos, contando curtas lendas ou revelando mais sobre elementos mitológicos com os quais nos vamos cruzando, até bugigangas equipáveis que conferem melhorias ou desafios de plataformas e de combate. Há uma boa quantidade de segredos para desvendar nas terras de Kenzera, o que me ajudou sempre a sentir recompensado por fazer ligeiros desvios à progressão narrativa.


Já quanto ao combate, tenho de admitir que não me encheu as medidas. Não é mau de todo, longe disso. Mas estabelece uma base e não foge muito disso. Zau tem duas máscaras na sua posse: uma alusiva à lua, e outra ao sol. A primeira confere ao protagonista a habilidade de realizar ataques de longo alcance, disparando flechas de energia e, eventualmente, de gelo; já a segunda permite realizar fortes ataque corpo a corpo e, eventualmente, desferir golpes de fogo. Para cada máscara, há um ataque base, um ataque forte e um ataque especial mais devastador.

Adicionalmente, cada máscara tem a sua própria linha de melhorias, que vão tornando os nossos ataques mais potentes ou mais frequentes, acrescentando apenas uma nova habilidade ou duas. No fim de contas, estas linhas de melhorias acrescentam muito, muito pouco à jogabilidade de combate, fazendo com que estes momentos sejam muito repetitivos. Combater no início do jogo, ou no fim do jogo é quase a mesma coisa, difere apenas o dano que desferimos ou as habilidades dos inimigos que enfrentamos.

Felizmente, mesmo com esta repetibilidade, enfrentar os bosses do jogo é sempre um momento alto da experiência. Estes apresentam-se sempre como os desafios mais distintivos de toda a experiência, colocando-nos dificuldades únicas que não encontramos em mais nenhum confronto do jogo. Atacar estes bosses ou inimigos comuns não é muito diferente, mas o mero facto de serem adversários muito mais imponentes, com um leque de ataques com uma área de efeito mais ampla, faz com que a nossa margem de manobra seja mais apertada, e obriga a movimentações e variações defensivas e ofensivas bastante distintas.


Não obstante a simplicidade e repetibilidade excessivas do sistema de combate serem algo que acho que podia ser melhorado, há dois problemas de maior importância e relevância que Tales of Kenzera: Tau apresenta – e são ambos bugs irritantes que perturbam a experiência. O primeiro, e o mais óbvio, é o bug do fecho do mapa. Num metroidvania, há uma ação que qualquer jogador realiza tantas vezes quanto o salto – a abertura do mapa. Naturalmente, neste jogo isso não é exceção. Foram centenas as vezes que abri o mapa para ver qual o melhor caminho a seguir, ou para estudar o percurso que tinha imediatamente à minha frente.

O problema aqui é que, ao fechar o mapa, a movimentação de Zau é travada. Ou seja, se fechamos o mapa com Zau em movimento, este para no lugar onde está. Mais, se fechamos o mapa e carregamos imediatamente no botão direcional ou no analógico, este não funciona e Zau permanece no sítio onde está até pararmos o comando de movimento e o retomarmos. Isto é muitíssimo problemático para a fluidez do jogo. Perdi a conta à quantidade de vezes que fechei o mapa apenas para me deparar com Zau ali especado à espera de um comando… que eu lhe estava a dar, mas o jogo não lia.

O segundo bug não só perturba a fluidez do jogo, como leva a uma boa dose de mortes perfeitamente desnecessárias e frustrantes. Zau tem uma habilidade de esquiva que funciona tanto no ar como em terra, e a dada altura adquire uma habilidade que torna esta esquiva mais poderosa, para poder partir algumas paredes. O problema é que ambas as esquivas interagem de forma bizarra com as paredes, chãos e tetos dos ambientes que atravessamos. Se estivermos agarrados a uma parede, a esquiva na direção oposta é impossível. E mesmo no chão ou no ar, se a esquiva implicar um ligeiro raspão numa qualquer superfície, Zau cai imediatamente a seguir ao mesmo. Foram tantas, tantas as vezes que vi Zau cair para a sua morte após uma esquiva durante a qual um pixel raspou num teto. E garanto que cada morte assim era mais frustrante que a anterior.


A boa notícia é que, fora estes dois bugs, Tales of Kenzera: Zau é um jogo que se porta muitíssimo bem do ponto de vista técnico. O jogo corre consistentemente a 60 fotogramas por segundo, sem quebras notáveis quer durante as sequências de plataformas recheadas de efeitos de partículas no ambiente, quer durante os momentos de combate em que enfrentamos mãos cheias de inimigos que nos atacam ao mesmo tempo. O tempo de regresso ao jogo depois de uma morte também é rapidíssimo, o que atenua um pouco (não totalmente) a irritação causada pelo bug que mencionei no parágrafo anterior.

Como até já tinha aludido antes, a direção artística deste jogo é absolutamente sublime. As cores do mundo são sempre fortes, vívidas e extremamente apelativas. Os designs de criaturas são sempre interessantes e bastante diferentes daquilo que costumo ver em videojogos. As animações de Zau, dos seus ataques e de todas as criaturas que enfrentamos são também muito, muito boas. Apenas achei bizarros os modelos das personagens humanas. As proporções e os olhares gélidos são estranhos, e destoam bastante da vivacidade de tudo o resto que o jogo tem para nos regalar a vista.

Uma última palavra de apreço também para todo o design sonoro de Tales of Kenzera: Zau. A banda sonora é toda muito boa, e está bastante bem implementada com os momentos mais impactantes do jogo, acentuando tudo o que Zau vai sentindo enquanto luta contra os demónios, sejam eles exteriores ou interiores. Os efeitos sonoros são um pouco menos memoráveis, mas são competentes, acompanhando com qualidade suficiente as ações que vamos desempenhando e o impacto que estas têm no mundo.


Conclusão
Tales of Kenzara: Zau é um metroidvania tocante, emocionante e emocional que retrata muitíssimo bem literal e metaforicamente a dor de uma perda e o subsequente processo de luto. A narrativa é fortíssima e o seu mundo é um deleite de descobrir e de explorar, faltando apenas um sistema de combate mais robusto e a resolução de alguns problemas para ser uma experiência que nos leve ao céu. Ainda assim, não tenho dúvidas de que os fãs deste género encontrarão aqui uma experiência absolutamente cativante e marcante.

O Melhor:
  • História profundamente tocante sobre perda e luto
  • Mapa amplo, variado e repleto de segredos para descobrir
  • Inspiração em mitologia africana oferece um contexto apelativo e diferente
  • Direção artística atrativa, com cenários coloridos e vibrantes, mas…

O Pior:
  • … Os modelos das personagens são algo bizarros
  • Combate demasiado simples e repetitivo
  • Dois bugs problemáticos que atrapalham a experiência

Pontuação do GameForces – 8/10

Título: Tales of Kenzera: Zau
Desenvolvedora: Surgent Studios
Publicadora: EA Originals
Ano: 2024

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para PC, através de um código gentilmente cedido pela Electronic Arts

Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Análise | Tales of Kenzera: Zau – A Vã Luta Contra o Luto Análise | Tales of Kenzera: Zau – A Vã Luta Contra o Luto Reviewed by Filipe Castro Mesquita on maio 03, 2024 Rating: 5

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