Com a crescente saturação do mercado de videojogos, a primeira impressão de um videojogo precisa, bem, de impressionar. Por um lado, é crucial que a jogabilidade seja intuitiva e o seu potencial lúdico imediatamente evidente, assegurando que o mais breve clip ou descrição é capaz de arrebatar a sua audiência alvo. Por outro, a apresentação deve ser esboçada de modo a magnetizar a nossa atenção antes de sequer compreendermos a ação no ecrã - e, para os criadores independentes, que não dispõem dos bolsos fundos dos maiores estúdios para construir universos ultrahipermegarrealistas e animações aprimoradas até ao mais ínfimo detalhe, esta necessidade consuma-se usualmente na conceção de um estilo artístico diferenciado, representativo do primor global no jogo.
Em Chicory, este duo de valências surge de mãos dadas: não só a nossa personagem navega um mundo encantador saído de um livro de colorir para crianças, mas também pode usar um pincel mágico para o preencher de cores, que serão recordadas pelo jogo mesmo que o reiniciemos. Se algo está no ecrã, pode ser tingido do tom que desejarmos (dentro duma seleção); pouco importa se é uma árvore altaneira ou o acanhado focinho de uma coelha. Mas mais do que deixar os moradores locais com cianose ou carotenemia, também podem, em imensas sidequests, desenhar e pendurar quadros pela terra de Picnic Province, e projetar os emblemas, pratos e t-shirts dos estabelecimentos espalhados pelo mapa. Este mundo de animais antropomórficos é genuinamente nosso para preencher e cunhar, onde não existem quaisquer restrições ou entraves ao seu desenvolvimento de acordo com a nossa imaginação e visão.
…Exceto, talvez, a vossa
proficiência com as ferramentas de pintura do jogo. Num comando tradicional, o
pincel é controlado com o analógico direito de forma independente da nossa
personagem, numa experiência que considero tão intuitiva e natural como dirigir o volante de um carro com as costas da mão. Sem conhecimento de causa,
aposto que ficarão mais bem servidos com os controlos por toque ou movimento
da versão Nintendo Switch, ou com o touchpad da Steam Deck; noutras plataformas, padecerão das recorrentes frustrações que atravessei sempre que tentava
concretizar um retoque fino.
Eu, um incorrigível zero à esquerda a Educação Visual, encontrei nesta liberdade uma oportunidade dourada para achincalhar e pouco mais, mas não deixo de admirar o potencial criativo e de expressão que esta direção possibilita. Não sou, ainda assim, capaz de pasmaceira e, se Chicory se cingisse a esta dimensão lúdica, teria desterrado o jogo da minha Xbox antes do oitavo gatafunho. Felizmente, este mundo não estava à nossa esperinha para ser pintado: a Picnic Province estava repleta de tons e gradientes mornos e suaves até que, do nada, todas as cores se desvanecem e a Chicory, a personagem responsável pela pintura do reino, desaparece do seu posto, deixando apenas o singular e insubstituível pincel mágico no seu rasto. É nesta conjuntura que TripaDAveiro, a humilde empregada de limpeza que controlamos, descobre o pincel e autonomeia-se para descobrir o paradeiro de Chicory e investigar a recém-instalada monocromia do continente, fazendo uso dos poderes facultados por este artefacto histórico.
Para TripaDAveiro, esta é uma
oportunidade sem precedentes para alcançar o nível dos seus ídolos; para o
jogador, é um metroidvania topdown, num mundo amplo que se expande a
cada nova habilidade e encharcado de atividades paralelas para realizar e NPCs interessantes para
conhecer. Para ambos, consta um rol de peripécias pela região para
ajudar diferentes povoações, traçadas por uma miscelânea de puzzles e platforming,
nas quais descortinar a sequência de ações certa é tão ou mais importante
do que concretizá-la.
A única anomalia neste registo consistente de excelência consiste nas salas escuras. Antes de podermos avançar nelas, precisamos de pintar o terreno para o iluminar, uma
tarefa vagarosa e dificultada pelo carácter pegajoso do nosso pincel, que se
agarra a toda a santa aresta presente no ecrã. Quando entro numa destas caves
sombrias, o satisfatório ritmo da minha viagem por Picnic Province é tão
bruscamente interrompido que sinto que alguém acionou o travão de mão enquanto viajava pela autoestrada.
Para o bem da minha saúde mental (e da pontuação desta análise), estas salas tornam-se mais esporádicas com o avanço da história e, de resto, a jogabilidade é tão absorvente e gratificante que só quando me alapei a escrever esta análise me apercebi de que Chicory: A Colorful Tale mal ostenta combate. Este vertente só dá ares da sua graça no final de cada capítulo, quando temos de enfrentar um boss, e o que estes combates carecem de dificuldade é compensado em larga medida pelos seus vários contributos para a experiência. Por exemplo, para além de serem uma forma lógica e climática de encerrar as missões que encabeçamos, estes dão uma oportunidade à compositora Lena Raine de intervalar as suas estupendas músicas jucundas e pacíficas de exploração com estupendas músicas estrondosas e empolgantes de confronto.
Estes duelos andam também de mãos dadas com a história, trazendo à tona e desenvolvendo os grandes temas da narrativa. Porém, não sou o maior entusiasta do enredo per se. Admiro a firme interligação entre os elementos da experiência, tanto na relação óbvia entre as temáticas da expressão pessoal e da busca de um propósito e a mecânica de pintura, como na relação íntima entre as inseguranças das personagens e a ameaça que paira sobre Picnic Province, e até no modo como a solicitude de TripaDAveiro nas side quests é explorada na narrativa. Todavia, isso não significa que me comovo com a exposição da síndrome de impostor em Chicory.
Em emoções, aprecio e vanglorio os momentos nas entrelinhas: o crescimento implícito nas ações resolutas, encontrado em experiências como CHAOS;CHILD; os conflitos patentes num olhar ou na inflexão da voz, como em God of War (2018)/Ragnarok. Não encontro a mesma naturalidade, credibilidade e, consequentemente, potencial de compadecimento nos diálogos do jogo entre personagens homónimas, que mais parecem monólogos de um só desenvolvedor transladados para os balões de texto das personagens. Não pretendo, com este comentário, reduzir a importância dos temas tratados; espero sim clarificar porque é que, pessoalmente, esta narrativa não me aquece nem arrefece e, consequentemente, que não foi por lapso que a omiti dos pontos fortes ou fracos da experiência. Reconheço, contudo, que existem jogadores que veem nas personagens de Chicory uma fonte de força e inspiração, e basta isso para esta história merecer ser enaltecida.
Neste jogo, não é só a história que legitima as dificuldades atravessadas por alguns jogadores; também uma seleção surpreendentemente exaustiva de opções de acessibilidade está ao vosso dispor. Através das opções do jogo, podem alterar os pontos de vida de TripaDAveiro, trocar a fonte do texto por uma alternativa mais legível, mudar a tonalidade base do mundo de jogo, e até desativar os "sons molhados". Se as qualidades de Chicory já eram um fenomenal argumento para convencer os jogadores a vivenciar esta jornada, estas medidas asseguram que ninguém tem desculpa para ficar de fora!
Conclusão
Se há um jogo prodigiosamente multifacetado, é Chicory: A Colorful Tale. Não há grandes "mas" a levantar aqui; este projeto indie tem algo a oferecer a todos os jogadores - tanto presenteando quem procura uma experiência feel-good com um mundo pacífico repleto de atividades calorosas e um profundo potencial de personalização, como oferecendo uma aventura refinadíssima e uma exploração da síndrome do impostor a quem procura uma jornada mais estruturada, tradicional e memorável.
O melhor
- Jogabilidade divertida, combinando platforming e puzzles;
- Profissional e recompensante progressão de desafios;
- Apresentação cativante evocativa dos livros de colorir...
O pior
- Imprecisão do analógico direito para o controlo fino do pincel;
- (Ab)uso de salas escuras.
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