Digo isto para concluir que Another Code: Recollection parece a memória onírica criada a partir dos jogos que recria e reinventa: Another Code: Two Memories para a Nintendo DS e Another Code R: Journey into Lost Memories para a Wii. Resolver mistérios na pele da jovem Ashley Robbins, inspecionando minuciosamente diferentes áreas e resolvendo os puzzles que estas escondem, já não é exatamente a mesma empreitada, e não é necessária uma lupa para perceber a quantidade e profundidade das mudanças levadas a cabo.
Afinal de contas, salta logo à vista a novidade mais evidente: uma atualização dos gráficos e da nossa perspectiva. Longe vão o ponto de vista topdown de Two Memories, e o estilo 2.5D de Journey into Lost Memories. No seu lugar, foi introduzido um sistema de exploração 3D no qual os dois jogos são unificados e homogeneizados, em que possuímos controlo pleno da câmara e de Ashley numa perspetiva de terceira pessoa a que milhentos jogos desta indústria já nos habituaram. Com um novo ponto de vista, chega também uma remodelação completa dos ambientes e personagens, num estilo gráfico pintado com cores suaves e modelos básicos mas apelativos, perfeitos para alimentar uma atmosfera descontraída e convidativa que encaixa perfeitamente na cadência serena das duas campanhas.
Porém, Another Code não se fica por aqui: todas as personagens receberam uma transformação mais ou menos substancial no seu design, e todas poderiam orgulhosamente apresentar o seu Antes e Depois nos programas de tarde da TV. É impressionante como as mudanças têm tanto de radical como de positivo, ao modernizarem os penteados e trajes e alterarem profundamente todos os rostos para os tornar mais apelativos e memoráveis, ao ponto de algumas personagens serem virtualmente irreconhecíveis. E ainda mais vida é imbuída nestas personagens com o voice acting competente que foi adicionado à maior parte dos diálogos (em inglês e japonês), bem como com o primoroso rol de animações empregue em todas as cinemáticas, ambos decisivos para que a expressividade de Ashley a aproxime dos jogadores.
É um triunfo importante para Another Code garantir o nosso investimento na sua personagem central, não só porque ela é os nossos olhos e porta de entrada neste mundo mas também porque é em torno da família e passado desta jovem que se constroem os grandes enigmas deste enredo. É precisamente uma carta do pai de Ashley, que a adolescente julgava ter morrido 11 anos antes, que a leva a viajar até à solitária ilha Blood Edward e a investigar a sua mansão abandonada e repleta de mistérios. Inspecionando cada sala da vasta habitação, lendo as anotações redigidas num passado distante, há uma tranquilidade mórbida, um prenúncio de morte latente, que nos deixa curiosos por seguir em frente e descobrir o destino dos habitantes deste casarão desprovido de vivalma. Tanto que o nosso grande companheiro desta viagem pertence ao dominio do metafísico: um fantasma incapaz de partir para o além por não se lembrar do seu passado, que apenas tem como ponto de partida a sua alcunha "D".
Portanto, conduzimos duas
errandas em paralelo: a procura do pai de Ashley e a descoberta do passado de D,
com base no passado da família Edward. Na versão DS, apenas o primeiro destes
objetivos era obrigatório, com a investigação da vida de D a condicionar uma variação no final da campanha. No remake, somos forçados a resolver os
dois mistérios, uma decisão discutível.
Por um lado, a relação entre a vida de D no passado e o paradeiro do pai de Ashley no presente é no máximo circunstancial/superficial, gerando a sensação que estamos a esbanjar o nosso tempo (em contraposição com a versão DS em que ajudávamos voluntariamente D por empatizarmos com a sua situação e, consequentemente, a jornada tinha mais valor pessoal). Por outro, convenhamos, Another Code: Two Memories é uma campanha curtíssima (em parte pela erradicação dos seus enigmas mais arbitrários, uma vitória a meu ver!), e todo o incentivo para espremermos o seu suminho é fundamental. Assim que abandonamos uma divisão da mansão, não temos nenhum motivo para lá regressar, e o único conteúdo opcional presente corresponde à procura de pequenos origamis que desbloqueiam registos de texto.
Another Code R: Journey into Lost Memories partilha a mesma escassez e tipologia de conteúdo opcional, mas nesta aventura valorizo ainda menos esta questão. Esta sequência, originalmente lançada para a Wii, tem o dobro da duração, e ao mesmo tempo parece a antítese e o complemento necessário do primeiro jogo. Se Two Memories está praticamente circunscrito aos confins da desolada mansão Edwards, o segundo transporta-nos para o amplo e verdejante parque de campismo do Lake Juliet, frequentado por personalidades de todos os feitios. Ao contrário da premissa críptica do predecessor, esta sequência inicia-se com um banal convite de um familiar – mas rapidamente percebemos que temos mais incógnitas da vida de Ashley para esclarecer, quando a adolescente começa a ter flashbacks da sua mãe e a desenterrar pontas soltas de um grande mistério local. Esta é uma investigação que conduzimos num ambiente mais aconchegante, com uma frequente interposição de momentos de confraternização e calor humano que não levantavam a cabeça em Two Memories.
Apesar do contraste entre a atmosfera das campanhas, as duas narrativas transitam harmoniosamente entre si pelo natural aumento de complexidade (tanto no maior número de personagens como na teia mais emaranhada de mistérios em paralelo) e surgem unidas pelo tema no seu epicentro: memórias. Ashley, D e Matthew (do segundo jogo) veem-se reféns das suas memorias perdidas, do seu passado turvo que desvendam ao longo destas duas histórias. As respostas para estas incógnitas são usualmente simples, mas satisfatórias, passando por questões como assassinatos e abuso de álcool que são corriqueiras no género mas refrescantes num jogo publicado pela Nintendo. E, sem entrar em spoilers, um elemento narrativo é introduzido em Another Code que encaixa como uma luva nas grandes temáticas das histórias e que introduz imenso potencial para as aprofundar...
Potencial esse que mal sai do
papel. Apesar das suas excelentes ideias e assuntos centrais, Another Code não
parece estar interessado em ir além de uma exploração superficial deles. Alguns
conflitos emocionais são resolvidos apressadamente e com palavreado genérico, e
as maiores reviravoltas a que assistimos são revertidas ou resolvidas em
minutos, por vezes de formas tão clichè quanto ilógicas. Os desenvolvimentos nunca são frustrantes, mas também nunca são verdadeiramente climáticos, como se a equipa da Arc System Works tivesse receio de abandonar o mesmo registo consistente e
modesto de acontecimentos.
Dei por mim a comparar várias vezes Another Code: Recollection com Steins;Gate 0, outro título em que as memórias assumem um papel central: a visual novel da MAGES explora até às últimas consequências as potencialidades narrativas da memória, pagando o preço de ser ocasionalmente confusa e de derrapar para plot holes, enquanto o remake da Arc System Works desvia-se de potenciais pontos baixos, mas é similarmente incapaz de atingir as alturas mirabolantes de outras histórias. Foi com prazer que vivenciei ambas as experiências… mas já sei que será a obra da MAGES a que mais distintamente recordarei daqui a uns anos. Não me entendam erradamente, Another Code: Recollection tem um bom enredo, mas provavelmente agradará mais quem procura uma introdução a este tipo de jogos do que quem já degustou as melhores iguarias que este gênero tem para oferecer.
Mesmo os mistérios centrais, apesar de intrigantes, são bastante diretos e acessíveis, até um pouco previsíveis, o que prejudica principalmente o primeiro jogo, que tem de ser bastante esticado para alcançar as suas 5 horas de duração. Em duas instâncias, Another Code: Recollection pede-nos para apontar a resposta certa para os grandes enigmas do enredo, e as respostas são tão óbvias que parecemos estar a ser testados somente na nossa alfabetização. Pelo menos, já não temos de passar pelos longos e morosos interrogatórios de final de capítulo da versão DS!
Nesta área, o remake poderia ter sido mais revolucionário. Não é como que se possa valorizar o receio de os puristas poderem não apreciar as alterações na enredo, porque os desenvolvedores já mostraram ter coragem para alterar imenso as duas histórias – tanto que nem nos deixam começar Journey into Lost Memories sem passarmos primeiro pelo Two Memories revigorado! Na aventura da DS, as mudanças são inócuas, meramente retocando o timing de determinados eventos ou deixando um rasto de migalhas para interligar melhor a história inaugural à sequência, mas o jogo da Wii arregaça as mangas, atira a caução ao vento e remolda o barro que os desenvolvedores deixaram. Por exemplo, duas personagens evaporaram-se, e alguns acontecimentos e pequenos arcos narrativos foram removidos! Aliás, se tiverem terminado o título original, aperceber-se-ão de uma completa reinvenção do clímax no remake, em que os acontecimentos basilares são colocados num conjunto reimaginado de circunstâncias e motivações que torna a jornada pelas duas histórias mais coesa, imaginativa e satisfatória.
Mais uma vez, fiquei impressionado com o resultado desta depuração: com o novo argumento, encontramo-nos perante uma narrativa mais focada e com menos devaneios supérfluos, que espreme ainda mais originalidade dos conceitos singulares deste universo. Claro está que, tendo experienciado antes a versão Wii, senti ocasionalmente que algo estava em falta, mas apenas numa destas ocasiões senti que a recuperação do elemento narrativo removido beneficiaria a história. De resto, só consigo criticar a nova edição do enredo por dar a algumas relações menos tempo para amadurecerem naturalmente. Portanto, esta revisão do argumento podia ter ido um pouco mais além, mas é praticamente só por defeito que peca!
A minha leve insatisfação com os mistérios não se verifica só na grande escala: os pequenos quebra-cabeças que traçam a jogabilidade encerram um problema de proporções bem maiores. Os Another Code originais eram tanto jogos de puzzles como de gimmicks e podiam ser considerados ótimas demonstrações das potencialidades da Wii e DS. Por exemplo, em Two Memories, precisávamos de fechar a velhinha DS para progredir, e, para resolver outro enigma, tínhamos de soprar para o microfone da consola para embaciar uma janela e ver um código nela anotado. A Switch, que Deus a tenha, não tem cabedal para sustentar conversões diretas destes pequenos truques. Consequentemente, os puzzles tiveram de ser retrabalhados ou pura e simplesmente substituídos neste remake.
Perdeu-se imenso na singularidade dos desafios, mas a nova seleção de quebra-cabeças de Two Memories é suficientemente competente para sustentar a aventura do ponto de vista da jogabilidade. Estes puzzles são geralmente focados no reconhecimento de padrões e descodificação de códigos como nos velhos jogos point and click e têm um nível de dificuldade polido, nunca roçando a frustração decorrente de mistérios excessivamente crípticos ou a abstração e distração despoletadas por desafios facílimos.
O estranho é que, quando saltamos
para a sequência, esta apreciação não se aplica. Se Two Memories está recheado de pequenos enigmas com
variadas premissas e respostas, Journey into Lost Memories pouco ou nada tem
para entreter os nossos dedos. Lá verão um puzzle aqui e acolá, salpicados como
folhas de salsa num arroz; todavia, o arroz que preenche o tacho consiste em
caminhadas incessantes de objetivo a objetivo e a um monte de minijogos de hacking, que não são nada mais do que quick time events enfadonhos. Nunca me
senti entediado, mas por vezes lá vinha o pensamento intrusivo “Quem
me dera que este walking simulator fosse uma visual novel pura para eu não ter
de fazer tantas procissões pelo vilarejo”, o que não é bom sinal.
Tal como Two Memories, Journey
into Lost Memories também contava com usos constantes das capacidades únicas do hardware que o abrigava, nomeadamente do Wii Remote, cuja omissão deixa um vazio inquietante na jogabilidade. Existem puzzles em Another Code: Recollection que
exigem o uso de controlos por movimento para avançar na história (que são completamente
inócuos, diga-se de passagem), por isso nem podemos dizer que os
desenvolvedores não estavam coniventes com este método de controlo. Logo, erradicar
estes momentos de jogabilidade não era uma dor de crescimento obrigatória, dado
que os Joy-Con são perfeitamente capazes de simular as ações de um Wii Remote.
Em alternativa, diversos destes segmentos poderiam ter sido adaptados para
controlos tradicionais ou controlos de toque, mesmo que o resultado pudesse ser muito básico após a eliminação da gimmick que os justificava. Porém, entre isso e nada, prefiro a opção que
não me deixa a suspirar para as paredes.
Conclusão
Another Code: Recollection não é apenas um remake, é uma lipoaspiração apaixonada que almeja tornar Another Code: Two Memories e Another Code R: Journey into Lost Memories nas suas melhores versões. O mundo de Ashley Robbins foi completamente reconstruído, os puzzles foram maioritariamente substituídos por alternativas justas, variadas e adequadas e nem a história escapou de alguns desvios radicais face à original, surpreendentemente positivos na sua globalidade. O resultado final é uma jornada honesta e despretensiosa, perfeita enquanto introdução ao gênero e capaz de comprazer quem pretender resolver mistérios cheirando as rosas pelo caminho.
O melhor
- História interessante, com protagonistas e temáticas centrais bem conseguidos...;
- ...Com imensos ajustes que melhoram o seu ritmo de acontecimentos e a tornam mais coesa;
- Bons e variados puzzles em Another Code: Two Memories, com dificuldade afinadíssima;
- Completa renovação audiovisual do jogo e modernização dos controlos;
- Atuação vocal competente a acompanhar a maior parte dos diálogos;
O pior
- Exploração superficial da temática central e conflitos interpessoais resolvidos à pressa;
- Mistério central de Two Memories é insuficientemente elaborado para sustentar a duração da campanha;
- Obrigatoriedade de desvendar o passado de D atenua o peso emocional desta missão;
- Vazio incomodativo na jogabilidade de Another Code R: Journey into Lost Memories;
- Sem acontecimentos realmente climáticos e com um único desenvolvimento fora da caixa;
- Perda da singularidade mecânica das versões originais dos jogos.
Nota do GameForces: 7.0
Desenvolvedora: Cing (versão original), Arc System Works (remake)
Ano: 2024
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Nintendo Portugal.
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