À medida que me aproximo da centésima
análise que escrevo para a GameForces, começo a sentir que me auto plagio em
relação a alguns assuntos. Talvez o mais recorrente seja a minha opinião acerca
do mercado de jogos independentes, sobre o qual digo sempre que é neste que
encontramos algumas das ideias mais frescas, inovadoras e interessantes de todo
o universo de videojogos. Bem sei que alguns se poderão chatear ao ler sempre a
mesma coisa – incluindo eu, pela minha falta de criatividade no modo como
abordo o assunto -, mas jogos como Everhood a chegarem e a proporem algo
que nunca tinha visto, como não me repetir? Mas será Everhood: Eternity
Edition um jogo tão apelativo quanto único, ou ficarei eternamente
arrependido de passar por esta experiência?
Não vale a pena tentar esconder que Everhood
é um título profundamente inspirado no adorado e bem-sucedido Undertale.
Tanto que é muito difícil escrever uma análise deste jogo sem o comprar com a
obra-prima de Toby Fox. Desde a direção artística ao design de personagens, ou
desde a escrita do argumento até à banda sonora, quase que dá vontade de criar
aqui um termo para este jogo, estilo “under-like”, “tale-like”, ou
“undertale-like.” Everhood não é um jogo tão bom como Undertale,
fica desde já esclarecido. Mas ainda que fique aquém em várias das suas
vertentes, é um jogo que faz bem a maioria das coisas, e que oferece algumas coisas únicas que distinguem esta experiência.
Comecemos pela narrativa. Em Everhood,
assumimos o papel de uma marionete muda simplesmente chamada Red. Quando
conhecemos Red, encontramo-lo despedaçado e vemos um pequeno ladrão a
roubar-lhe um braço. Ao acordar e ao tomarmos controlo do nosso protagonista, o
objetivo é claro: perseguir o pequeno ladrão de volta de modo a recuperarmos o
nosso braço. Mas claro que nem tudo é assim tão simples, e cedo vemos Red
envolvido numa aventura animada, psicadélica e na qual a sobrevivência de todo
o mundo de Everhood e dos seus habitantes vai ser posta em causa.
É uma boa história, com boas reviravoltas
e com um tom geralmente alegre, mesmo nos momentos de maior tensão ou mais
pesados, mas é também aqui que encontro algumas das maiores falhas deste under-like.
A meio da aventura, o objetivo de Red muda radicalmente com uma revelação
intrigante sobre o protagonista e sobre o mundo. Se esta guinada narrativa foi
bem-vinda e bem conseguida, fiquei a pensar que o desfecho apresenta uma
reviravolta a mais. Pior, é uma reviravolta que parece ter vindo do nada e que
torna o final demasiado confuso e esotérico. Há vários outros finais que se
pode tentar, mas nenhum deles acaba por ser propriamente gratificante.
Ainda que uma reviravolta a mais tenha
deixado um sabor agridoce na boca, há uma vertente do jogo que se apresenta
como um pecado maior: as personagens. Parece estanho estar a falar de um undertale-like
onde as personagens sejam o ponto mais fraco do jogo, mas é o que encontro em Everhood.
Não há uma única personagem memorável ou à qual me tenha ligado emocionalmente.
Nunca me senti minimamente investido nas pequenas narrativas que envolviam a
população deste mundo e, pior que tudo, achei insípidas quase todas as
tentativas de humor. Nota-se uma vontade de criar personagens charmosas,
engraçadas e memoráveis, mas o jogo nunca consegue atingir esse objetivo.
Posto isto, deixamos para trás todos os
defeitos de Everhood, com o resto do que este tale-like apresenta
e oferece a ser francamente positivo! O sistema de combate é ridiculamente
divertido e a vertente mais distinta e bem-conseguida do jogo. As batalhas são
sempre apresentadas como jogos de ritmo, onde os nossos adversários vão
lançando ataques coloridos ao som da banda sonora. Podemos mexer Red
lateralmente, fazendo-o saltitar entre cinco corredores, de modo a evitar os
ataques. É precisamente assim que se derrota inimigos, esquivando-nos ou
saltando por cima das ondas que vão enviando pelos corredores abaixo.
Para além de único, este sistema de
combate é bastante versátil. Primeiro, porque o grau de dificuldade é bastante
moldável, podendo variar entre padrões nos quais ser atingido é uma vergonha
para mim e para toda a minha família, e padrões dos quais me parece francamente
sobre humano sair totalmente ileso, sem ser atingido por uns quantos ataques. Depois,
e o mais interessante, é que o jogo adapta este modelo de batalha para uma série
de situações diferentes. Um jogo de ténis, onde temos de devolver bolas
atiradas pelo oponente, um jogo estilo Dungeons and Dragons onde usamos
uma espada mágica para refletir ataques, uma corrida de karts onde temos de nos
esquivar de obstáculos e outros pilotos, entre outros. A criatividade evidenciada
no modo como este sistema é adaptado é incrível, sendo ainda mais impressionante
pelo facto de todas estas variantes serem sempre divertidíssimas.
E antecipando já a questão que terão em
mente: sim, a banda sonora ajuda a elevar toda a experiência de combate, já que
é de enorme qualidade. Não consigo pensar numa única trilha sonora que não me
tenha deixado a bater o pé ou a cantarolar enquanto levava Red a saltar,
esquivar-se ou refletir os coloridos ataques que cada nota musical gerava. Nem
mesmo durante as batalhas mais frenéticas e stressantes conseguia evitar abanar
um bocado a cabeça ao ritmo da música. Cada vez que pousava o comando, era
imediatamente invadido por vontade de ir ao YouTube encontrar as músicas que tinha
ouvido durante essa sessão de Everhood, e ainda hoje tenho algumas das
suas trilhas em rotação na minha lista do Spotify.
Mas não é só na música que este tobyfox-like
quase – quase! – não deixa nada a desejar face a Undertale, mas também
na sua vertente visual. A mistura de estilos visuais retro pixelizados, com
alguns ambientes em 2.5D a fazer lembrar a era da PlayStation original,
juntamente com efeitos luminosos mais modernos é extraordinária. Isto para não
falar de todas as distorções de cores e formas que acontecem ao longo da
história, da exploração do mundo de Everhood e, sobretudo, durante as
batalhas, que transformam o jogo numa experiência surreal e psicadélica.
Felizmente, por muito psicadélico que o jogo fique, nunca fiquei confuso com o
que via nem nunca senti que isso perturbasse a minha capacidade de jogar. Mas
convém referir que este pode ser um jogo particularmente complicado (se não
mesmo perigoso) para quem seja mais fotossensível.
Algo que também tenho todo o prazer em
referir é que Everhood não sofre de qualquer soluço técnico. No meio de
ecrãs a derreter, mil e uma luzes coloridas que põem à prova os limites do
espectro de cores da minha televisão, ritmos de ataques que quase envergonham os
guitarristas que conseguem tocar na perfeição “Through the Fire and Flames” dos
DragonForce, e tantas outras coisas a acontecer – nem uma quebra na taxa de
fotogramas, nem uma ida abaixo do jogo, nem um bug visual e nem um tempo de
carregamento excessivo. Apenas um desempenho impecável do jogo a todos os níveis.
Uma palavra final para a longevidade de Everhood:
Eternity Edition. Uma única campanha não é muito longa – cerca de 5 horas,
diria. Mas a verdade é que quererão mergulhar no jogo mais do que uma vez. O modo
New Game + contém segredos exclusivos para desvendar, há cerca de uma mão cheia
de finais para obter (ainda que o primeiro pareça ser o canónico), e esta
edição do jogo para a PlayStation e para a Xbox inclui ainda novos bosses para
enfrentar, naquelas que serão as batalhas mais desafiantes de toda a
experiência. Há aqui muito sumo, e mesmo num ano em que a quantidade e a qualidade
dos lançamentos estão num patamar tão ridiculamente elevado, vale bastante a
pena explorar o que Everhood tem para nos oferecer.
Conclusões
Everhood:
Eternity Edition é um jogo de aventura e ritmo bastante
bem-conseguido, mas que não consegue atingir o patamar de estrelato do jogo no
qual se inspira. É uma aventura bastante divertida, com um estilo de combate
diferenciado, um mundo bem construído e uma banda sonora que me faz bater o pé. Mas tenta demasiado e sem sucesso ser um novo Undertale, acabando por
deixar algo a desejar em alguns momentos da história (sobretudo no desfecho) e
nas personagens que apresenta. É um indie de grande, grande nível, ao qual
quererei regressar mais vezes, mas fica um pouco aquém em alguns aspetos, o que
o impede de ser um título para a eternidade.
O Melhor:
- Jogabilidade simples, cativante,
divertida e desafiante
- Banda sonora e trilhas musicais de grande
qualidade
- Direção artística bem conseguida que
brinca com vários estilos visuais
- História gira e interessante, mas…
O Pior:
- … Com uma reviravolta final confusa e
caída do céu
- As personagens deixam bastante a desejar
Pontuação
do GameForces – 8/10
Título: Everhood: Eternity Edition
Desenvolvedora: Foreign
Games
Publicadora: Surefire.Games
Ano:
2023
Nota: Esta análise foi realizada
com base na versão digital do jogo para a PlayStation 4, através de um código
gentilmente cedido pela Surefire Games.
Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
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