O meu backlog da Steam é um purgatório sem fundo para os desafortunados jogos lá presos, mas recentemente arregacei as mangas e finalmente desenterrei um dos títulos mais empoeirados: Danganronpa: Trigger Happy Havoc. Era natural que eu, um fã eterno de Ace Attorney, gravitasse para a série mais cedo ou mais tarde, incapaz de resistir a homicídios complexos resolvidos em julgamentos imprevisíveis. Claro que notei imensas diferenças fundamentais que separam Danganronpa da série de advogados, desde a jogabilidade focada em diferentes minijogos de dedução aos diálogos e humor mais “japoneses” mas, quando caíram os créditos, um genial conjunto de enigmas e respostas, casos intrigantes e excelentes de resolver, e personagens bem desenvolvidas já me tinham deixado rendido e desejoso por mais.
O mais racional seria concretizar esse "mais" com Danganronpa 2: Goodbye Despair, mas vi-me a reoganizar as minhas prioridades no meio da minha curiosidade e antecipação por uma nova aventura. Master Detective Archives: RAIN CODE é uma nova propriedade desenvolvida pelos nomes mais sonantes por trás da trilogia Danganronpa, que prometia desafiar-me com mais casos de queimar neurónios e chorar por mais. Mais do que uma introdução ao meu histórico com a série, este prelúdio serve para vos pedir um favor: quando me virem a comparar Danganronpa e RAIN CODE, lembrem-se que não faço ideia da história e das evoluções de jogabilidade
introduzidas nas sequências.
Comparações entre Rain
Code e Danganronpa são inevitáveis, seja nas gritantes semelhanças que ambos partilham ou nas divergências que os desenvolvedores da Too Kyo Games e da
Spike Chunsoft introduziram. Nos primeiros minutos desta nova história,
reconhecemos o estilo de personagens icónico de Danganronpa, com olhinhos
gigantes e contornos cerrados, aplicado agora a figurantes tridimensionais, e o
estilo musical eletrónico, perfeito para trazer à tona o detetive em nós. Mas é
também aqui que começam as diferenças: desta vez, não estamos restritos a um edifício, e temos acesso a uma plenitude de localizações realizadas em “verdadeiro 3D”. O comboio que percorremos durante o tutorial já se trata de uma manifesta mudança de paradigma, mas é
meramente um aperitivo face ao palco do resto do jogo: a grande
cidade de Kanai Ward.
Esta vasta metrópole revela-se acolhedora e chamativa para os jogadores, com a sua cativante iluminação néon e constante queda de chuva…
e da taxa de fotogramas. Infelizmente, problemas técnicos não faltam em Rain Code,
como o flicker momentâneo de texturas nas transições de cena, algumas
falhas de iluminação e a inconstância da taxa de fotogramas. Se esta é uma cidade
vasta e cativante, nada justifica a performance sub-ótima do jogo na Nintendo
Switch. Pela jogabilidade lânguida que caracteriza esta espécie de “aventura nascida
de uma visual novel com maior financiamento”, a performance pouco
afeta a jogabilidade; num jogo mais frenético, como um platformer,
seria imperdoável.
Embora Kanai Ward seja convidativa para nós, a realidade para as personagens não podia ser
mais diferente: esta metrópole está isolada do mundo e é controlada com um braço de
ferro pela Amaterasu Corporation. Palavras como “justiça” e “verdade” não fazem parte do dicionário da sua força de segurança Peacekeepers, que responde aos crimes
rampantes da cidade culpando o coitado que estiver mais à mão e silenciando
quem ousar contestar a sua iluminada sentença.
Pouco espanta que os maiores inimigos deste regime sejam os Master Detectives, enviados para a cidade com a missão de desvendar o Grande Segredo de Kanai Ward (resolvendo alguns homicídios pelo caminho). Um destes detetives de excelência é a nossa personagem, Yuma Kokohead, que acorda numa estação de comboios sem as suas memórias. Algures nessas recordações perdidas estariam também as suas habilidades de detetive, o que deixa o nosso protagonista a suar em bica quando tem um mistério para resolver antes de sequer pôr os pés na cidade.
A sorte do protagonista é ter um pacto com a Shinigami, um fantasma que lhe dá uma mãozinha nas investigações do mundo real e, mais importante, lhe abre as portas dos Mystery Labyrinths. Estes labirintos são materializações dos mistérios do mundo real ancoradas numa dimensão paralela, um pouco como os Palaces de Persona 5, onde podemos resolver os enigmas do caso um por um.
Se no mundo real participamos em conversas,
investigamos a cidade e examinamos pistas sem qualquer pressão, sendo os quick-time
events e algumas perguntas inconsequentes os únicos momentos em que podemos
errar, os Mystery Labyrinths colocam à prova os nossos poderes de dedução, ao
longo de vários minijogos. E é aqui que Rain Code mais aparenta ser o irmão
mais novo de Danganronpa, ainda com um brilho juvenil nos olhos e o desejo
inato de seguir as passadas do primogénito.
Basta ver que Reasoning Death Match, um minijogo em que ouvimos a argumentação de um oponente até conseguirmos refutar um facto com uma das pistas que recolhemos, é essencialmente uma reinterpretação do Non-Stop Debate de Danganronpa. O Shinigami Puzzle, em que completamos uma frase com a palavra reveladora para chegar a uma nova dedução, selecionando as suas letras na ordem correta como num jogo da forca (hangman game), é, quem diria, uma adaptação de Hangman’s Gambit.
Já Deduction Denouement é um minijogo sem precedentes em que, após resolvermos os enigmas dos casos, recapitulamos as ações do criminoso através do preenchimento dos espaços de uma banda desenhada com a ordem cronológica de eventos, para em seguida ouvirmos as personagens a recitar tudo
aquilo que já sabemos durante vários minutos… estou a brincar, isto é
igualzinho ao Closing Argument. Por fim, God Shinigami é um
minijogo de timing para encher chouriços com apenas uma ou duas pequenas deduçõezinhas,
numa perda de tempo apenas rivalizada pelo Bullet Time Battle de Danganronpa… e por um monte de corredores neste novo título que temos de percorrer lentamente enquanto
esperamos pelo fim de uma conversa, á la The Last of Us e God of War 2018. Estes têm ainda mais impacto no pacing do jogo do que este aparte tem no da análise!
Existem também momentos de recriação de cenas de crime e secções frenéticas de pensamento rápido que misturam perguntas com quick time events mas, fora estas duas adições pertinentes, é evidente que os Mystery Labyrinths são análogos aos Class Trials da sua "série-mãe”. Melhor dizendo, são uma evolução, graças a pequenas melhorias nos minijogos, como um maior dinamismo em Reasoning Death Match e inclusão de descrições de todas as ilustrações em Deduction Denouement.
Em fórmula vencedora não se mexe, portanto? Errado, porque este sistema nunca foi ideal. Nem falo do estorvo que é God Shinigami; o verdadeiro problema destes minijogos é o seu contributo para a baixa dificuldade do jogo. Em todos os minijogos, temos de escolher a evidência certa dentro de um pequeno punhado escolhido pelo jogo, o que torna as decisões facílimas. A maior parte das contradições que encontramos corresponde a uma discrepância direta e imediata entre a afirmação sob escrutínio e a descrição ingame da prova correta, ou seja, raramente somos encorajados a pensar profundamente nas implicações da evidência, ao contrário do que acontece nos melhores murder mysteries (Ace Attorney, *wink*). Até há enigmas (de maior ou menor escala) que são completamente trivializados pelas restrições dos minijogos ou pela estrutura do Mystery Labyrinth. Em momentos de "raciocínio" como o da imagem abaixo, que podem ser resolvidos sem qualquer contexto do caso, só consigo mesmo rir.
Em Danganronpa: Trigger Happy Havoc, encontramos versões menos refinadas destas mecânicas, mas ironicamente este problema é menos pronunciado, em parte graças a uma melhor progressão da dificuldade dos minijogos e a uma aposta maior em deduções mais complexas, mas principalmente devido à maior exigência dos seus casos. Noutros jogos de excelência do gênero, quase todos os casos de RAIN CODE seriam usados como um tutorial. Todos têm premissas interessantes, como locked room mysteries (mistérios de sala trancada), mas saem muito prejudicados pela escassez de reviravoltas ou surpresas. Por duas vezes, adivinhei os culpados e métodos de homicídio antes de pôr os pés nos respetivos Mystery Labyrinth, naquela que é possivelmente a maior derrota para estas secções "revolucionárias".
Ainda por cima,
a forma como chegamos à verdade é ocasionalmente pouco satisfatória. Quando “provamos”
um acontecimento com base em evidência circunstancial, ou quando apontamos, por
exclusão de partes, o provável culpado dentro do pequeno grupo de indivíduos
que Yuma calhou a encontrar, permeia a sensação de que está tudo a correr “demasiado
bem”, de que o Mystery Labyrinth está a conspirar a nosso favor. Fico a cogitar se os desenvolvedores criaram os Mystery Labyrinths para lhes simplificar a vida porque, se as deduções fossem realizadas no mundo real, o nosso raciocínio seria facilmente deitado por terra por um juiz
justo, quanto mais os implacáveis e corruptos Peacekeepers.
Em suma, no campo da dificuldade,
o que temos aqui é baby’s first murder mysteries (uma expressão tão lógica
como dog’s first spelling book, mas a contradição foi concebida pelos
desenvolvedores, não por mim!). Para adicionar insulto à injúria, a nossa
recompensa por realizarmos as sidequests e interagirmos com todos os objetos de interesse possíveis é Skill Points, com os quais compramos habilidades que nos ajudam nos Mystery Labyrinths (como um número ainda menor de pistas em Reasoning
Death Match ou mais tempo para finalizar Shinigami Puzzle). Assim, a minha recomendação é
ajudarem tantos cidadãos quanto puderem e fingirem que a vossa recompensa é o
prazer de conhecerem melhor o dia a dia e as dificuldades de quem vive sob a
alçada da Amaterasu Corporation.
De facto, em Rain Code, os homicídios
e Mystery Labyrinths são apenas uma face da moeda e, em última instância, ganhei
imensa apreciação por este título pelo seu enredo. Kanai Ward está
profundamente caracterizada, tanto no aspeto dos seus bairros, como nos relatos
e ações dos seus habitantes – incluindo os homicídios que resolvemos, que representam a
expressão mais forte do desespero, impotência e loucura da população.
Conhecer os nossos colegas Master
Detectives também é estimulante: embora eles sejam personagens planas, as suas
animações expressivas e excelente voice acting em inglês (acompanhado de
um lip sync horrível como o de Xenoblade Chronicles 2, infelizmente)
dão-lhes vida e tornam-nos memoráveis. Em cada capítulo somos acompanhados por
um deles e podemos utilizar os seus Forensic Fortes, habilidades especiais como a
possibilidade de ver uma cena do crime tal como estava quando foi descoberta
pela primeira testemunha, ou de recuar alguns segundos no tempo. Desta forma, as secções de investigação no mundo real
nunca se tornam repetitivas, em parte pela diversidade mecânica permitida pelos Fortes, em parte pela
variedade nos diálogos e estilos de piadas que nascem do choque de personalidades entre Yuma e os colegas.
Obviamente, as personagens que
mais se distinguem são Yuma e Shinigami… mesmo não sendo espetaculares. Shinigami é a
principal fonte do humor “japonês” que nos era proporcionado por Monokuma em
Danganronpa. Uma parte das piadas é boa, outra é previsível e até hipócrita ou escusada,
como os innuendos sexuais e os insultos a outras personagens.
Pessoalmente, já estou completamente dessensibilizado a este humor mais
controverso, que me entra por um ouvido e sai pelo outro, mas poderá ser
incomodativo para quem o estiver a descobrir pela primeira vez. Fora isso, ao dar apoio e dicas a Yuma, Shinigami é uma boa parceira que impede que existam momentos
mortos em termos de diálogos, e é um gosto ver esta personagem a mudar a sua
sensibilidade em relação aos humanos ao longo da jornada.
Finalmente, Yuma, privado das suas
memórias, tenta perceber o seu lugar do mundo e o valor da verdade numa cidade
corrupta como Kanai Ward, e reflete continuamente sobre se deve ou não
continuar o seu percurso como um detetive, escolhido por um “Yuma” que, na
prática, não é o mesmo que acompanhamos na história. Pode ser ocasionalmente frustrante ver
tanta contemplação sem repercussão na sua inação ou modus operandi, especialmente
no que toca à entrada compulsiva nos Mystery Labyrinths, mas é difícil não ficarmos
investidos nas dúvidas da personagem e no seu recomeço como detetive.
E é quando Yuma colide com os
mistérios centrais de Kanai Ward que Rain Code se torna verdadeiramente excecional! O objetivo
de “desvendar o Grande Segredo de Kanai Ward” pode não ser o mais entusiasmante numa fase inicial, especialmente por não ser pessoal (como o de “desvendar
a nossa morte” em Ghost Trick: Phantom Detective, por exemplo). Porém, as respostas dadas aos mistérios centrais desta história
são fascinantes e inesperadas em si mesmas e ainda melhores ficam pela sua relação íntima
com as grandes temáticas e dilemas de Rain Code, levando-me a abandonar a história extasiado
e desejoso por mais!
Conclusão
Nunca pensei sair com um sorriso
nos lábios de um jogo de murder mysteries no qual desvendar homicídios é
a parte menos bem conseguida, mas Master Detective Archives: RAIN CODE pregou-me
essa surpresa. É um prazer conhecer os mistérios centrais, personagens e locais
de Kanai Ward, independentemente da facilidade dos crimes ou de alguns problemas
técnicos.
Com este título, a Too Kyo Games
e a Spike Chunsoft estabeleceram uma interessante reinterpretação das mecânicas
de Danganronpa, que esperamos ansiosamente que venha a ser usada como base e
melhorada em novas aventuras destes detetives de elite.
O melhor
- Excelentes desenvolvimento e
resolução dos mistérios centrais;
- Pano de fundo singular e caracterizado
profundamente por todas as facetas da jogabilidade;
- Mystery Labyrinths conceptualmente
criativos;
- Adaptações melhoradas dos
minijogos de Danganronpa;
- Investigação no
mundo real diversificada através dos Forensic Fortes;
- Personagens com desempenhos vocais impecáveis e
animações energéticas;
- Componente audiovisual atraente…;
O pior
- …apesar de alguns problemas técnicos;
- Incomodativo vácuo de dificuldade;
- Algumas secções demasiado arrastadas e repetitivas.
Nota do GameForces: 7.5/10
Desenvolvedora: Too Kyo Games/Spike Chunsoft
Publicadora: Spike Chunsoft
Ano: 2023
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Nintendo Portugal.
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