A melhor parte de descobrirmos uma
boa série com atraso é já termos uma pletória de jogos daquele universo para
degustar. Cada ano sem um novo Ace Attorney despoleta exasperação em mim: uma
série que era prolífica na 3DS e que eu devorei nessa geração mantém-se viva atualmente através de remasters
e compilações.
Em contrapartida, tive a “sorte” de só descobrir o universo de visual novels SciADV no ano passado com os relançamentos de CHAOS;HEAD NoaH e CHAOS;CHILD, os títulos inaugurais da saga. Para os fãs de longa data, a revelação da data de lançamento de ANONYMOUS;CODE, o mais recente capítulo da série, representou a conclusão de 3 longos anos de espera; para mim, era terça-feira. Porém, nem tudo é rosas: embora já tenha STEINS;GATE e ROBOTICS;NOTES ELITE instalados na minha Steam Deck, não tive oportunidade de absorver estas aventuras. Consequentemente, já tinha a noção de que, quando experienciasse ANONYMOUS;CODE, muito me iria passar ao lado no jogo que promete “esclarecer vários dos enigmas sem resposta dos predecessores”.
Não ia deixar que isso me
impedisse de conhecer mais uma faceta desta antologia, não só porque cada “subsérie”
de SciADV se prende com personagens, elementos ficcionais e temáticas centrais
distintos (permitindo assim que qualquer um possa desfrutar das histórias num vácuo), mas
também porque já estava a bater o pé na ânsia de conhecer mais do trabalho de MAGES, que me
encantou no ano passado com duas histórias viciantes e recheadas de bons mistérios
e dois protagonistas com os arcos de desenvolvimento mais fascinantes que encontrei
em videojogos!
Desta vez, o gaiato que acompanhamos
é Pollon Takaoka, um jovem hacker que impulsivamente dá uma mão de ajuda
a todos os que precisam, rindo na cara de todos os instintos de autopreservação.
Mas rir do perigo pode sair caro, e é precisamente por esta atitude que Pollon se
vê a desafiar e fugir de forças militares para proteger Momo Aizaki, uma
rapariga misteriosa da qual nada sabe. Eventualmente, o seu encontro fortuito com a jovem arrasta-o
para uma missão de salvar o mundo, contra uma conspiração de contornos globais.
Talvez um hacker jovem e lingrinhas não inspire confiança como peça central numa missão destas… para nós, plebeus de 2023. O novo episódio da saga SciADV transporta-nos para 2037, uma realidade sci-fi em que tecnologias AI e AR são ubíquas e todas as pessoas, entidades e serviços estão completamente dependentes dos serviços web. Neste paradigma, uma falha informática, mais do que deixar as pessoas zangadas por não conseguirem a edição limitada de Xenoblade Chronicles 3, pode levar a perdas trágicas de vidas humanas. É aqui que entra Cicada3301, um hacker misterioso que organiza “Quests” aparentemente impossíveis, nas quais as vidas de multidões são colocadas em jogo, e que poderá ser decisivo para a missão de Pollon e Momo.
Apesar de ser perspicaz e contar
com o apoio dos seus amigos, Pollon nunca conseguiria dar conta do recado normalmente.
O que torna este jovem excecional é poder usar uma cheat – literalmente.
Ele consegue fazer save de ficheiros de jogo e, se lhe dermos acesso ao
menu de load no momento certo, carregá-los e voltar atrás no
tempo, mantendo todas as memórias do futuro que está prestes a reescrever. Por vezes, usamos o load
de formas insignificantes, como para nos fazermos de espertinhos ao acertar uma
questão que Pollon errara na primeira tentativa, mas, na maior parte das instâncias, fazemo-lo para escapar a situações de vida ou morte.
Deste modo, a interação do
jogador com a história não é opcional, ao contrário do que se verifica com os
Delusion Triggers dos jogos CHAOS;. As nossas ações nos dois jogos inaugurais
da série traduziam-se no desbloqueio de diferentes caminhos opcionais alternativos, nos
quais ficávamos a conhecer melhor as personagens coadjuvantes. Em
ANONYMOUS;CODE, a nossa atuação simplesmente progride a história, enquanto a
inação nos conduz a dezenas de bad endings. Esta é assim uma mecânica conceptualmente sólida, que aumenta o envolvimento do jogador nas situações mais
cruciais da narrativa e estreita a sua relação com Pollon.
No entanto, Pollon aceita
fazer load exclusivamente em falas muito específicas e, se falharmos a nossa
oportunidade por apenas termos tentado ativar a funcionalidade uma caixa de
diálogo mais cedo ou mais tarde do que era suposto, não temos como evitar o game
over. É como se Pollon dissesse “eu sei que um carro a 300km/h está prestes
a relar-me, mas deixa-me cheirar a chapa antes de fugir”, e nestes casos a minha resposta é
sempre a mesma: tentar acionar o Load em todas as santas falas até o iluminado
jovem decidir que chegou a Hora H. Falhar não é crítico, visto que conseguimos
voltar ao ponto em que nos encontrávamos em um ou dois minutos; todavia, poucos
são os bad endings interessantes o suficiente para nós não os encararmos
como uma perda de tempo.
Se a inexistência de rotas em torno de personagens particulares e a quantidade de “situações de vida ou
morte” não o deixaram evidente, esta é uma história mais focada em ação e menos nas personagens. Mal temos tempo para respirar, com a cadência com que saltamos entre diferentes segmentos de ação, sempre com uma sensação de crescendo
e de novidade, graças à integração de princípios informáticos e científicos devidamente explicados. É bem possível que jogadores versados nestas disciplinas
revirem os olhos perante eventuais inconsistências ou saltos de lógica, mas o energúmeno
que escreveu esta análise não tem competência para os detetar e fica
simplesmente contente por adquirir novo conhecimento e vê-lo integrado numa história
entusiasmante.
Porém, isto não é suficiente para
compensar pela diminuta atenção dada à caracterização das personagens. Comparadas
com as suas equivalentes de CHAOS;HEAD e CHAOS;CHILD, as personagens secundárias
de ANONYMOUS;CODE são extremamente básicas e apenas têm relevância na narrativa
através da assistência que prestam aos planos de Pollon e Momo. Por seu lado, estes protagonistas
crescem gradualmente com o avanço da trama… mas de forma tímida, quando
contrapostos com os Taku de CHAOS;. Eu posso descrever o Pollon do final da
aventura do mesmo modo que o apresentei no começo, enquanto os restantes protagonistas de SciADV que acompanhei evoluem demasiado ao longo dos seus arcos para eu poder fazer o mesmo com eles.
A própria estrutura da história
parece desvalorizar os protagonistas, não conferindo twists ou
profundidade ao passado de Pollon e despachando os maiores mistérios em torno
de Momo nos primeiros capítulos para se poder debruçar de corpo e alma sobre o
iminente fim do mundo. Tanto os jogos CHAOS; como ANONYMOUS;CODE introduzem
conspirações e riscos de elevada escala, mas os primeiros sabiam dar prioridade
às pequenas vidas e histórias humanas dos seus integrantes e tinham um pacing
imaculado, capaz de equilibrar as revelações da conspiração com as das
personagens ao longo de toda a experiência.
Ainda assim, a inteligência
emocional é evidente no novo argumento, desta vez aplicada às temáticas centrais.
Não quero entrar em spoilers, mas a realidade construída na dependência
de tecnologia, a natureza do mundo de Pollon e as implicações lógicas de save
e load são engenhosamente usadas como base para desenvolvimentos marcantes,
suscitando dúvidas desconcertantes que o jogo não responde conclusivamente,
preferindo promover a sua deliberação por parte dos jogadores.
Esta é uma experiência que nos acompanhará
por alguns dias depois de a finalizarmos, e o que nos ajuda a preservá-la nitidamente na
nossa mente é, bem, a apresentação. Os ambientes que visitamos são coloridos e
recheados de detalhes, e as sprites 2D das personagens são igualmente
vibrantes e trazidas para a vida com diversas animações. Ver desenhos 2D a mexer
os lábios e o corpo pode evocar os movimentos de um boneco articulado de papel,
mas esta opção confere vitalidade às transições de posição sem ser uncanny o
suficiente para nos distrair e é um passo em frente em relação à simples
alternância de sprites com animações de fade out/in.
Alguns dos acontecimentos da história
elevam a fasquia da já pulsante apresentação, ao serem concretizados em quadros
de banda desenhada como em NEO: The World Ends With You. Só pecam por defeito:
estranhamente, estas cenas são prevalentes na primeira metade do jogo, acompanhando
mesmo algumas instâncias de mera exposição, mas na segunda são raras e deixadas
de fora de vários momentos cruciais do enredo.
Porém, se não podemos contar
sempre com os segmentos de banda desenhada, a excelente banda sonora é uma
constante contribuição para a euforia dos eventos. Ainda no campo sonoro, ANONYMOUS;CODE
é o primeiro título da série com dobragem em inglês, e foi com este competente
e sóbrio trabalho vocal que acompanhei as empreitadas de Pollon e Momo. E,
desta vez, posso anunciar que não encontrei nem glitches nem falhas de design
na interface do jogo, ambos problemas gritantes nos dois ports CHAOS; para
a Nintendo Switch. A localização é praticamente exemplar, sendo possível contar
os inócuos erros de ortografia ou sintaxe com os dedos de uma mão.
Não dormiria com paz de espírito
se terminasse a análise sem mencionar que este é um enredo com um número supranormal
de menções a Portugal. Isso faz de ANONYMOUS;CODE um jogo melhor? Talvez não,
mas se são como eu e têm uma descarga dopaminérgica sempre que veem uma menção ao
país à beira-mar plantado, comprem uns pasteis de nata, coloquem o vosso cachecol
vermelho e verde favorito ao pescoço, e preparem-se para inchar o peito com esta
história!
Conclusão
Não encontrei em ANONYMOUS;CODE
as personagens e arcos de desenvolvimento fascinantes que me conquistaram
noutras experiências SciADV, mas esta continuação da saga mitigou esta omissão com uma empolgante narrativa sci-fi, explorações maduras de temas intrigantes
e a introdução de uma mecânica save/load que atribui ao jogador um papel ativo nos acontecimentos.
O melhor
- Aventura bombástica com
conceitos sci-fi à mistura;
- Temas transversais da história
que promovem introspeção;
- Ótima componente audiovisual,
incluindo uma louvável dobragem para inglês;
- Argumento, interface e engine
praticamente irrepreensíveis.
O pior
- Mecânica de save e load
demasiado rígida;
- Substituição das rotas alternativas
pelos inferiores bad endings;
- Caracterização simplória das
personagens secundárias;
- Pacing polarizado, com o
esclarecimento precoce dos maiores mistérios;
Nota do GameForces: 7.5/10
Desenvolvedora: MAGES
Publicadora: Spike Chunsoft
Ano: 2022-2023
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Spike Chunsoft.
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