Análise | Stray Gods: The Roleplaying Musical – Uma Voz Capaz de Encantar o Olimpo


Se há séculos e milénios atrás as mitologias eram uma inspiração para como os povos vivam as suas vidas, ou para explicar o inexplicável, hoje em dia são a base de tantas das histórias que consumimos. Em particular, a mitologia grega parece ser uma fonte de Peirene no que toca à infindável inspiração que dá a este meio. God of War (que até já molhou o pé na mitologia nórdica) e Hades são dois excelentes exemplos, mas é agora, em Stray Gods, que encontramos a proposta mais diferenciada: um RPG musical. Conseguirá este jogo seduzir-nos, qual musa inspiradora, ou far-nos-á desejar a rogar pragas aos deuses?


Em Stray Gods, assumimos o papel de Grace, uma jovem recém desistente universitária que se sente à deriva na vida, sem saber que papel tem no mundo. Até que um dia, durante umas audições para a banda que tem com a sua melhor amiga, conhece Calliope, uma aparente jovem com uma voz divinal capaz de trazer ao de cima toda a vivência emocional de quem canta com ela. Mas essa noite, Calliope aparece mortalmente ferida à porta de casa de Grace, e ao morrer-lhe nos braços passa-lhe o seu poder e torna a nossa protagonista uma Musa. Contudo, rapidamente os restantes deuses gregos ficam a par do que aconteceu, acusando Grace de assassinar Calliope para lhe tomar os poderes, a imortalidade e condenando-a à morte. Assim, partimos numa aventura emocionante e muito musical, na qual teremos de ajudar Grace a provar a sua inocência, enquanto lidamos com os problemas, com os egos e com os desejos do restante panteão divino.

A narrativa é sempre bastante intrigante, com um bom número de momentos que nos arregalaram os olhos. A revelação deste “Cluedo” mitológico é bastante satisfatório e deixa o mundo numa situação bastante mais interessante do que quando o jogo começa. Apesar de louvarmos a qualidade da escrita e ficarmos bastante cativados com os diálogos, é graças às personagens que tudo isto cola tão bem. Depois de quase 20 horas de jogo distribuídas por várias playthroughs, fechar o jogo pela última vez deixou-nos com um peso no coração. Vamos sentir falta do oportunismo engraçado de Pan, da implacabilidade prática de Persephone, da disponibilidade desajeitada de Asterion, e de tantas outras personagens tão bem construídas. Todas elas são um misto de verosimilhança e coerência mítica, um equilíbrio impressionante entre o realismo e as histórias heróicas que todos conhecemos. E depois de tanto tempo de jogo, por entre romances, traições, erros e empatias, são quase como uma família para a Grace e, por extensão, para nós.


O modo como vamos participando nesta história e nos seus acontecimentos é extremamente simples. Muito basicamente, é através de um sistema de opções de diálogo, de escolha e consequência. Dirigimo-nos a uma personagem, surgem até quatro opções de diálogo, escolhemos a que achamos melhor, e vemos como a conversa vai evoluindo a partir daí até terminar. Depois, passamos para outra conversa, para outro local ou para uma sequência musical, onde teremos de ir fazendo novas escolhas. Já conseguimos ver a tentação de alguns vós em rotular este jogo como adjacente à fornada de títulos da Telltale Games, mas com uma gimmick. O que não é verdade por duas razões.

A primeira é porque o facto de isto ser um musical não é uma mera gimmick. É durante os momentos musicais que os maiores conflitos narrativos e as cenas de ação mais sumarentas se desenrolam. Os poderes de Grace fazem com que ela consiga levar todos os outros, sejam deuses ou mortais, a cantar, e é durante estas canções que abrem o coração e a ficam mais suscetíveis à mudança e ao crescimento emocional. Para além de uma opção de design de jogo brilhante - pela coerência com os poderes de uma das Musas na mitologia grega e pelo facto de a música ser, de facto, um veículo emocional potentíssimo -, ficámos sempre entusiasmados quando a imagem passava para uma vista panorâmica e quando Apolo, Athena, e companhia desatavam a cantar. Sabíamos que algo importante ia acontecer, que um arco narrativo de uma ou mais personagens ia avançar ou que íamos ficar um pouco mais perto de resolver este murder mystery de proporções míticas.


A segunda razão prende-se com o facto de as nossas escolhas terem, de facto, algum peso no desenrolar da narrativa. O grande mistério central que serve de motivação para toda a história de Stray Gods é sempre o mesmo; quando ficamos a saber quem é o/a responsável pela morte de Calliope numa playthrough, sabemos para todas. Mas tudo o resto é passível de ser impactado pelas escolhas que fazemos ao longo de cada campanha: se personagens vivem ou morrem, se ficam em liberdade ou se acabam encarceradas, se adoram a humanidade ou se a desprezam… Inclusive se se querem envolver romanticamente com Grace ou não. Portanto, é através das nossas decisões que muito do conteúdo dos arcos narrativos das várias personagens se desenrola e se decide, e ficamos com a sensação de que a natureza das respostas que damos afeta este mundo de forma significativa.

De facto, é no que diz respeito à natureza das respostas que entra a parte do desempenho de papéis do subtítulo deste jogo – The Roleplaying Musical. Logo a abrir o jogo, assim que conhecemos Calliope, somos forçados a escolher um atributo à nossa Grace: encantadora, durona ou esperta. Estes atributos de personalidade desbloqueiam, respetivamente, opções de resposta empáticas, agressivas ou inteligentes. Ou seja, apenas se a nossa Grace for durona, por exemplo, é que podemos escolher as respostas mais agressivas durante as conversas com outras personagens; e neste caso, as opções mais empáticas e mais inteligentes passam a estar sempre bloqueadas. Portanto, há aqui uma componente de desempenho de papéis, na medida em que vamos moldando quem Grace é e como esta afeta as pessoas e o mundo a seu redor através da escolha deste atributo inicial e das escolhas que vamos fazendo ao longo da narrativa. Mas não é um RPG puro, como o subtítulo pode levar alguns a deduzir. Não há habilidades ou capacidades que vamos melhorando e, com isso, novas opções que vão sendo desbloqueadas (por exemplo, respostas mais inteligentes que requerem níveis diferentes de esperteza). Nada disso. E não estamos fazemos esse esclarecimento por considerar isto um defeito, mas apenas porque sentimos que é algo que deve estar claro para todos os interessados nesta valorosa experiência.


Mas desengane-se quem achar que lá por Stray Gods não ser um RPG no sentido moderno do termo, que não há aqui muito conteúdo para experimentar. Para além dos inúmeros desfechos que temos vindo a referir, há uma quantidade absurda de linhas de diálogo para explorar, várias opções de romance para explorar (ou não), e mais combinações de músicas do que as que conseguimos calcular. Sim, porque as escolhas que temos de fazer nas músicas não se encontram vinculadas ao atributo, podendo misturar opções agressivas, inteligentes e empáticas consoante nos dá nas ganas.

O melhor é que todas essas misturas acabam sempre para fazer sentido – algumas mais do que outras, mas fazem sempre algum sentido. E sim, todas as opções de diálogo também fazem sentido, mesmo quando saltitamos entre as neutras e dos atributos, nunca havendo uma única escolha que não corresponda bem ao que se passa depois. Se escolhemos a opção que diz “Está tudo bem,” o diálogo a seguir reflete que está, de facto, tudo bem, não ativa uma cena passiva agressiva onde se insulta a família inteira do interlocutor.

Portanto sim, Stray Gods: The Roleplaying Musical é um jogo com um valor de rejogabilidade muitíssimo elevado. Quem for fã deste género de jogos tem imenso conteúdo para explorar, e imensas combinações de diálogos e de estrofes musicais para aproveitar, transformando as cerca de 20 horas que jogámos em mais de 50 horas de jogo muito boas. Sim, porque nada disto valeria a pena se as músicas não fossem de enorme qualidade (e são), ou se os desempenhos dos atores não fossem exímios (e também são).


A música é sempre cativante, sendo quase garantido que ficará no ouvido de qualquer jogador, mesmo que não se fique propriamente com vontade de ir a correr para o Spotify para as ouvir de novo. Mas não deixa de ser um trabalho fenomenal de Austin Wintory – mais um, diga-se -, onde cada trilha e cada verso contribuem tanto e tão bem para o peso emocional das respetivas cenas e para a progressão da narrativa. E claro, o incontornável Troy Baker é brilhante enquanto Apollo, a brilhante Mary Elizabeth McGlynn é fantástica enquanto Perspephone, e todo o resto do elenco é estupendo nos seus desempenhos, tanto em diálogo como em canção. Mas claro, o destaque tinha que ser dado à sempre fenomenal Laura Bailey, com um desempenho tão cativante e inspirador quanto deve ter sido desafiante no papel da nossa protagonista, Grace.

O facto de Stray Gods ter uma direção artística bastante apelativa também ajuda a tornar toda a experiência tão cativante. Todo o jogo apresenta um estilo visual à la banda desenhada, com cores bastante vívidas e com uma boa utilização de contrastes e line art para dar um aspeto memorável à experiência. Houve apenas um momento ou outro em que a câmara parecia estar demasiado próxima das personagens, tornando as imagens dos seus modelos algo desfocadas. A maioria das animações também se apresentam como algo que faz lembrar transições de um painel para outro, tal e qual como numa banda desenhada. E ainda bem que assim o é, porque as poucas vezes que o jogo tenta mover a câmara… não corre muito bem: a taxa de fotogramas nunca passa dos 15 por segundo. Perguntamo-nos porque é que não se apostou única e firmemente no estilo de banda desenhada, e lamentamos este problema. Apenas acontece numa parte da história, mas lamentamos na mesma.

Por fim, não temos qualquer prazer em falar de outros aspetos mais técnicos de Stray Gods, porque é aqui que o jogo fraqueja mais notavelmente. Primeiro, e o mais óbvio, é o facto de haver cenas em que a mistura de som dos diálogos está bastante inconsistente. Por exemplo, as falas de duas personagens estavam no volume habitual, mas o de uma terceira estava bastante mais baixo, dificultando a audição da conversa toda sem manusear o volume da nossa TV com reflexos incríveis. Há também duas ou três instâncias em que vemos personagens a aparecer nos painéis quando não é suposto estarem na cena, no que parece ser uma má leitura das decisões tomadas até esses pontos, já que são personagens cuja presença ou ausência dependem das escolhas que vamos fazendo até então. E temos também de referir que o jogo pode ser muito pouco responsivo a ler os nossos inputs de escolha da fala ou verso musical a seguir. Foram várias as ocasiões em que o manusear do analógico correspondente não surtiu qualquer efeito no ecrã, tornando os momentos em que a escolha tem tempo limite algo problemáticos.


Conclusões
Stray Gods: The Roleplaying Musical é uma ode triunfal a uma ideia única e de difícil realização. A história é muito boa, a quantidade e variedade de escolhas e consequências é verdadeiramente impressionante, e o trabalho aqui colocado para que tudo fizesse sentido lógico e narrativo é sublime. As músicas são divinais, os desempenhos de todos os atores são perfeitos, sem exceção, e apenas não tem um lugar cativo no Olimpo por vários problemas técnicos que atestam que o jogo foi criado por mortais. Ainda assim, e porque nos deixou sempre com música no coração, é uma obra bastante digna de entrar no Panteão.


O Melhor:
  • História intrigante com personagens estupendamente bem construídas
  • Músicas de grande qualidade e muitíssimo bem integradas na narrativa
  • Desempenhos absolutamente exímios de todo o elenco
  • Grande valor de rejogabilidade
O Pior:
  • Mistura de som dos diálogos algo inconsistente
  • Alguns bugs e problemas gráficos ocasionais
  • Por vezes, os comandos são pouco responsivos
 

Pontuação do GameForces – 8/10

Título: Stray Gods: The Roleplaying Musical
Desenvolvedora: Summerfall Studios
Publicadora: Humble Games
Ano: 2023

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a PlayStation 5, através de um código gentilmente cedido pela Humble Games.

Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Análise | Stray Gods: The Roleplaying Musical – Uma Voz Capaz de Encantar o Olimpo Análise | Stray Gods: The Roleplaying Musical – Uma Voz Capaz de Encantar o Olimpo Reviewed by Filipe Castro Mesquita on agosto 31, 2023 Rating: 5

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