Quando era miúdo, detestava todas as
disciplinas de história. Achava uma tremenda seca ter de memorizar datas,
expansões territoriais e afins. Mas ao crescer, comecei a ganhar gosto por
aprender sobre estes assuntos, sobretudo por história mais moderna. Ao ponto de
um dos meus géneros literários favoritos começar a ser o da história
alternativa, achando fascinante todos os “e se?” que os autores colocavam nas
páginas. Melhor que um bom livro, apenas jogos que exploram estes assuntos,
como Wolfenstein ou Bioshock – algumas das minhas séries
preferidas. É também o caso de Atomic Heart, o primeiro jogo de uma
ambiciosa produtora russa que procura oferecer uma experiência capaz de ombrear
com estes gigantes. Mas será este um título que levaremos connosco no coração,
ou levar-nos-á a preferir participar um jogo de roleta russa?
Convém aproveitar já para vos avisar que
esta análise vai ter um padrão bem visível. Atomic Heart faz muitas
coisas bem, mas há sempre um senão. Há um passo atrás sempre que dá alguns
passos em frente. É uma autêntica montanha-russa cheira de altos e baixos. Mas
felizmente as suas qualidades são boas o suficiente para impedir a experiência
geral de se afundar pelos defeitos. Dito isto, preparem-se para estas e outras
metáforas deste género ao longo do texto!
Em Atomic Heart encontramos uma
versão alternativa e tecnologicamente muitíssimo mais avançada da União
Soviética nos anos 50. De facto, a URSS é aqui a líder mundial no que toca à
tecnologia, tendo conseguido criar e fornecer robôs leais a toda a civilização
humana. Para além disso, o brilhante cientista Dr. Sechenov criou uma
tecnologia que mistura a robótica e a neurobiologia. O próximo passo de todo
este avanço tecnológico é tornar a ligação entre as pessoas e os seus robôs
ainda mais simples e eficiente, mas na véspera do lançamento deste projeto, um
cientista ressentido lança o caos ao reprogramar todos os robôs para reagirem
com hostilidade perante qualquer ser humano.
É aqui que entra o nosso protagonista, um
agente de operações especiais antissocial e cegamente leal ao Dr. Sechenov
conhecido como Major P-3. Todo o conflito rebenta pouco depois de P-3 receber
uma luva com uma inteligência artificial chamada Charles, dando-lhe a
capacidade de evoluir para além dos limites humanos e usar habilidades
especiais para combater os robôs enlouquecidos. E assim partimos numa missão
frenética, violenta e recheada de voltas e reviravoltas onde se toca com alguma
profundidade em temáticas políticas, tecnológicas e éticas. Sem dúvida que Atomic
Heart nos coloca num mundo intrigante e cria um mistério muito mais denso
do que aparenta à primeira vista. Isto levou-me a sentir bastante investido na
história e nas ramificações de cada acontecimento e de cada reviravolta, mesmo
quando algumas eram bastante previsíveis.
Mas é também um enredo com vários
problemas. A reviravolta final não faz grande sentido e leva a um desfecho
narrativo simplesmente mau. Os diálogos acabam por ser inconsistentes, com bons
momentos de exposição e tensão e, simultaneamente, falas que parecem escritas
por um mau argumentista de uma companhia de wrestling sem grande sucesso.
E pior que tudo, o protagonista é simplesmente deplorável, sendo incrivelmente
difícil identificar-me com qualquer uma das suas atitudes perante os
acontecimentos. Encontramos aqui, portanto, o primeiro exemplo de uma autêntica
montanha-russa de prós e contras desta experiência.
Felizmente, uma vertente bem mais
consistente de Atomic Heart é a da jogabilidade. Com inspirações em shooters
na primeira pessoa que são autênticos clássicos modernos, como Bioshock
e Wolfenstein, é no conflito armado contra as hordas de robôs com os fusíveis
queimados que retiramos mais prazer deste jogo. Seja corpo a corpo, a manusear
uma das várias armas de fogo que vamos encontrando ou construindo, ou a usar
uma das várias habilidades que a nossa luva inteligente nos permite dominar, é
quando os robôs se apercebem da nossa existência e nos tentam aniquilar que nos
divertimos mais.
Mesmo nas dificuldades mais baixas, é
muito fácil sermos assoberbados por inimigos e ver a nossa barra de vida ser
rapidamente esgotada por pancadas, cortes, balas, mísseis ou lasers
adversários. Atomic Heart é sempre um jogo desafiante, onde estudar bem
o inimigo que temos perante nós e analisar cuidadosamente o arsenal e as
munições que temos ao nosso dispor é fundamental para conseguir a vitória nas
sequências de combate. E é no combate em si que este título se destaca, sendo
incrivelmente gratificante conseguir complicadas combinações de poderes
elétricos para desativar drones, enquanto nos esquivamos de uma bastonada de um
robô que nos ataca pelas costas para de imediato o despachar com três pancadas
bem dadas na sua cabeça e mudar rapidamente para uma arma para despachar outro
inimigo que vem a correr na nossa direção.
E este é apenas um de variadíssimos
cenários hipotéticos, graças à nossa luva falante. Ao longo do jogo, vamos
encontrando máquinas de venda que nos permitem equipar duas habilidades de cada
vez, que variam entre, por exemplo, congelar inimigos, usar forças magnéticas
para os deixar a flutuar no ar ou evocar um escudo que absorve muito do dano
que poderíamos sofrer. Aliando isto à variedade de armas que podemos equipar e
modificar para desferir vários tipos de dano elementar faz com que a
profundidade de Atomic Heart seja fenomenal. Senti-me sempre incentivado
a experimentar com diferentes habilidades perante diferentes inimigos, até
encontrar um estilo pessoalmente mais prazeroso. Mas todas as opções de combate
são viáveis, cabendo a cada jogador personalizar o que tem à sua disposição de
modo a encontrar um estilo que lhe faça mais sentido ou que seja mais eficaz
perante cada desafio específico.
Mas claro que tantos passos em frente
significam também alguns atrás. Comecemos pelas batalhas contra bosses.
A grande maioria destas aparece quase vindo do nada, fazendo pouco sentido para
o ritmo do jogo e da narrativa. Pior que isso, a grande maioria destes
encontros acabam por ser pouco memoráveis, já que os designs dos bosses não se
distinguem assim tanto dos de inimigos comuns, e as habilidades que estes
exibem ainda menos. O que salva esta vertente do jogo é o facto de o boss final
ser um dos momentos mais gratificantes, tanto pelo significado narrativo do
confronto como pelo desafio único que este nos coloca pela frente.
Mas o grande pecado capital diz respeito
ao design das arenas de combate. Estas estão sempre cheias de entulho que
apenas atrapalha, podendo transformar um confronto empolgante numa sessão terapêutica
de resistência à frustração num ápice. Não há nada pior do que estarmos a
movimentar-nos à volta de uma horda de robôs esquivos em busca da melhor
posição para lhes acertar com uma machada bem dada apenas para acabarmos presos
numa estante aleatoriamente tombada no meio da sala. Não vos consigo dizer
quantas vezes isto me aconteceu ao longo das 20 e poucas horas de jogo. Apenas
sei que fiquei sempre enervado por sentir que esquivar-me contra um elemento
ambiental era uma autêntica roleta russa, e normalmente as probabilidades
estavam contra mim.
E é uma pena que caixas de embate de
tantos elementos ambientais fossem problemáticas ao ponto de me levar a
desprezar tantas arenas de combate, porque fora isto, os níveis estão
muitíssimo bem desenhados. Há um caminho certo até ao(s) objetivo(s), com
imensas salas opcionais para explorar e encontrar mais recursos que podemos
usar para construir novas armas, consumíveis ou munições, ou pequenos pedaços
de informação que aprofundam o world buidling do jogo. Pelo caminho, há
vários puzzles para responder – a maioria dos quais é divertido o suficiente,
mas nada de muito marcante -, e salas escondidas para descobrir, normalmente
contendo algo que nos permite novos e poderosos upgrades para as nossas armas.
Enquanto estava nos níveis senti-me
sempre motivado a explorar tudo ao máximo, sendo impulsionado pelo facto de
haver muitas vezes uma recompensa à altura da tarefa. Infelizmente – e lá vem o
inevitável senão, uma vez mais -, estes níveis não se encontram no vácuo, mas
estão inseridos num mundo aberto. E o “senão” é simplesmente que as sequências
em que temos de andar pelo mundo aberto são tremendamente aborrecidas. O
objetivo é-nos apontado no mapa e na interface de utilizador, metemo-nos num carro
(incrivelmente chato de conduzir, já agora) e vamos a conduzir até ao nosso
destino enquanto rezamos para que as hordas de robôs que se atravessam à nossa
frente não nos danifiquem demasiado o veículo – cuja destruição resulta numa morte
quase garantida. O mundo está praticamente vazio, o sistema de alerta (que apenas
existe nestas sequências) é demasiado implacável, e há muitíssimo pouco que
justifique investir na exploração destas áreas.
Sim, porque há aqui um raro “mas” ao
“senão” do parágrafo passado! É através do mundo aberto que encontramos mais
níveis chamados testing grounds. Estes são níveis opcionais com
estruturas muito semelhantes às dos níveis principais, onde teremos de ir
explorando enquanto resolvemos puzzles mais intrincados e participamos em salas
de combates mais desafiantes. Para além de serem tão ou mais divertidos que os
níveis obrigatórios, é nestes que encontramos algumas das recompensas mais
valiosas, como recursos raros ou folhas esquemáticas que desbloqueiam upgrades
únicos para o nosso arsenal. De facto, só é pena termos de perder tanto tempo
no insípido mundo aberto de modo a podermos aceder a estes níveis.
Mesmo quando começamos a olhar para
aspetos mais técnicos, Atomic Heart continua a ser um jogo extremamente
consistente nas suas inconsistências. Ao nível gráfico, por exemplo, não tenho
quaisquer reservas em afirmar que estamos perante um dos títulos da atual
geração mais bem conseguidos no que à fidelidade gráfica diz respeito… em parte.
Os ambientes são resplandecentes, os modelos dos robôs e das armas são tão
interessantes quanto detalhados, e normalmente é um deleite contemplar todas as
proezas visuais do jogo. Mas tudo vai por aí abaixo quando entramos numa
sequência cinemática que nos tira da perspetiva da primeira pessoa e nos força
a ver P-3 e outras personagens a interagir. Os modelos e as animações de todas
as personagens parecem ter sido tirados da geração passada de consolas, ou até
da anterior, chocando de frente com todo o restante trabalho visual de elevada
qualidade.
No que toca à vertente sonora, a
inconsistência mantém-se. Não se preocupem com a música do jogo, já que a banda
sonora está ao encargo do lendário Mick Gordon - o que naturalmente significa
que não há uma única trilha que não seja absolutamente fantástica. Mesmo a
utilização das músicas mais intensas de metal pelas quais o compositor é
mais conhecido é exímia, conferindo aos respetivos conflitos uma sensação de
urgência e de intensidade muito mais memorável. Tendo isto em conta, mais o
facto de a grande maioria dos efeitos sonoros também estar muito bem
conseguido, onde está a ressalva? Nos desempenhos de voz. Em inglês ou em
russo, não há um único desempenho verdadeiramente marcante pela positiva. Quase
todos deixam bastante a desejar. É certo que a maioria das linhas de diálogo
escritas não facilita minimamente o trabalho dos atores, mas não deixa de ser
algo que causa alguma impressão.
Até no desempenho do jogo encontramos
altos e baixos. Geralmente, Atomic Heart corre a 60 fotogramas por
segundo sem qualquer problema, mas em ocasiões em que os efeitos luminosos se
tornam muito numerosos e intensos, verifiquei que este valor ficava um tanto ou
quanto mais baixo. Também tenho de notar que o jogo foi abaixo uma vez em todo
este processo, fazendo-me perder quase 40 minutos de progresso. Não me
interpretem mal, para um primeiro jogo, ainda para mais sendo geralmente tão
bonito e detalhado, os produtores fizeram aqui um trabalho de otimização bastante
competente, havendo apenas algumas arestas por limar.
Mas, enquanto ávido caçador de troféus,
tenho de terminar esta análise com alguma amargura. No preciso momento em que
escrevo estas palavras, e que esta análise vai para o ar, o troféu de platina
de Atomic Heart é impossível de obter. Nesta demanda, conquistei 22 dos 42
troféus, tendo a certeza absoluta de que completei os critérios para, pelo
menos, mais 6. Alguns dos contadores dos colecionáveis simplesmente não
atualizam, há um troféu cuja descrição não bate certo com os critérios que
aplica, e há pelo menos dois em que o contador indica que terminei o que era
exigido, mas os troféus ficaram por desbloquear. Isto é desapontante. Mesmo com
todos os seus defeitos, Atomic Heart era um jogo ao qual eu me imaginava
a regressar para dominar e alcançar mais um daqueles cobiçados troféus
azuis-bebé. Mas assim, a minha motivação fica simplesmente esmorecida.
Conclusões
Atomic
Heart é um jogo que dá constantemente um passo atrás por
cada dois que dá em frente. Tudo aquilo que faz muitíssimo bem vem sempre com
um “mas” agarrado. Visualmente é incrivelmente belo, mas as personagens são
feíssimas. A jogabilidade de disparos na terceira pessoa é extremamente divertida,
mas o design das arenas é frustrante. O mundo e a história são bastante
interessantes, mas tem uma reviravolta a mais que não faz sentido e o
protagonista é detestável. Por aí fora. Ainda assim, é uma experiência com
altos mais significativos que os baixos, e da qual os fãs de shooters na
primeira pessoa podem retirar bastante prazer.
O Melhor:
- Contexto bastante interessante com uma
história mais profunda do que parece
- Jogabilidade frenética, intensa e
incrivelmente divertida
- Enorme profundidade e variedade de
habilidades equipáveis
- Design dos níveis é de elevadíssima
qualidade
- Ambientes, armas e inimigos robóticos
apresentam qualidade gráfica acima da média
- Banda sonora de Mick Gordon é um mimo
para os ouvidos
O Pior:
- A reviravolta final estraga o desfecho
narrativo
- O protagonista é dos piores de que tenho
memória
- Design das arenas de combate leva a momentos
de enorme frustração
- Mundo aberto cuja exploração é entediante
- Modelos das personagens são genéricos e
deixam muitíssimo a desejar
Pontuação
do GameForces – 7.5/10
Título: Atomic Heart
Desenvolvedora: Mundfish
Publicadora: Focus
Entertainment
Ano:
2023
Nota: Esta análise foi realizada
com base na versão digital do jogo para a PlayStation 5, através de um código
gentilmente cedido pela Ecoplay.
Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
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