É inegável que o
género de terror tem sempre algo de cativante. É impossível não torcer por
Ripley quando esta enfrenta os implacáveis xenomorfos em Alien, ou pelos
adolescentes perseguidos por vilões como Freddy Krueger ou Jason Voorhees, em Nightmare on Elm’s Street e Friday the 13th respetivamente. Mas por
muito que gostemos de ver personagens a superarem-se e a derrotarem forças
impiedosas muito mais poderosas, por vezes pode ser divertido sermos os
monstros ou os maus da fita. E é aqui que Carrion
entra, colocando-nos num cenário perfeito para uma experiência de terror, mas
invertendo os papéis habituais. Será Carrion
uma experiência monstruosamente boa, ou apenas um jogo que nos deixará a gritar
de desespero?
Em Carrion, encontramo-nos enclausurados
num complexo edifício localizado debaixo de terra, repleto de cientistas que
estão a conter e a estudar um estranho monstro. Em vez de assumirmos o papel de
um dos variadíssimos humanos aqui contidos, somos colocados na pele – ou no
conjunto de músculos e cartilagens, melhor dizendo – deste monstro. Assim que quebramos o contentor que nos confinava, o nosso objetivo é levar
este monstro a encontrar uma forma de escapar deste vasto edifício, destruindo
e consumindo tudo e todos os que, entretanto, se atravessem no nosso caminho. Esta
inversão de papéis é uma proposta imediatamente apelativa e distinta,
levando-nos a questionar como é que algo deste género não é mais vezes tentado
na indústria dos videojogos.
Mas Carrion não se fica por uma premissa
apelativa, expandindo-a com uma narrativa também ela interessante. Esta é
maioritariamente contada de forma subtil, através de pistas ambientais como
letreiros eletrónicos e indicações nas paredes, mas também através de algumas
sequências jogáveis que se apresentam sob a forma de flashbacks. As últimas acrescentam bastante à história, contando
como o nosso monstro foi originalmente descoberto e capturado. Não sendo um
argumento que vá ganhar prémios pela sua escrita, não deixa de ser uma surpresa
agradável ver o empenho dos produtores em oferecer uma experiência mais
completa que vai para além da destruição desmiolada por parte de uma criatura
selvagem.
Com isto não
queremos sugerir que a destruição desmiolada de tudo o que nos aparece à frente
seja pouco apelativo. Bem pelo contrário, Carrion
está no seu auge quando nos deixa à solta para selvagemente partir tudo e matar
todos os que se encontram numa sala. O prazer desta experiência deve-se muito à
jogabilidade simples e de fácil compreensão. Fazer o nosso monstro navegar
pelos ambientes bidimensionais é intuitivo, e usar os nossos tentáculos para
agarrar objetos e/ou pessoas é simples de compreender e sempre divertido. Ao
longo da campanha, vamos explorando várias áreas e adquirindo várias
habilidades que nos permitem novas maneiras de interagir com os ambientes e
novas formas de causar o caos, dando-nos sempre um bom leque de opções de encarnarmos na perfeição um monstro descontrolado.
Há aqui um
equilíbrio cuidado de modo a nunca deixar que o nosso monstro seja
excessivamente poderoso ao ponto de poder atravessar este edifício a correr e
sem qualquer cuidado. Este equilíbrio é alcançado através dos inimigos humanos
que empunham armas, como metralhadoras ou lança-chamas, ou que podem até
controlar construções robóticas com um poder de fogo considerável. Há outras
ocasiões onde a estrutura labiríntica nos obriga a deixar uma boa parte da
nossa massa muscular e tentacular para trás de modo a podermos avançar pelo
edifício, deixando-nos naturalmente menos robustos e mais expostos aos inimigos
armados.
Estas tentativas
de equilíbrio tornam Carrion um jogo com um nível de desafio sempre
agradável e muito pouco frustrante. No entanto, não podemos deixar de sentir
algumas ocasiões onde existe alguma inconsistência na dificuldade. A dada
altura, chegamos a uma área do edifício onde temos de explorar várias zonas na
ordem que quisermos, e sentimos que havia uma zona claramente mais desafiante
do que as restantes. Um outro exemplo foi quando nos deparámos com uma sala
particularmente desafiante, apenas para todas as seguintes dessa área serem demasiado
fáceis. Assim, ainda foram algumas as ocasiões nas quais sentimos alguma falta
de afinamento no que ao desafio diz respeito, e não podemos deixar de sentir
que houve alguma falta de cuidado nestas ocasiões.
Onde não sentimos
qualquer desequilíbrio foi nos puzzles que Carrion coloca perante nós.
Cada nível consiste num conjunto de ecrãs com ligações algo labirínticas que
nos obrigam a prestar atenção aos ambientes de modo a descobrir como progredir.
Para tal, temos de muitas vezes deixar o nosso monstro mais fraco ao abandonar
alguma da sua massa de músculo e cartilagem para trás. Isto porque as
várias habilidades que vamos adquirindo apenas podem ser utilizadas quando a
nossa criatura apresenta um determinado tamanho ou robustez. Por exemplo,
habilidades mais furtivas, como a invisibilidade ou o disparar silencioso de um
tentáculo, estão limitadas a uma constituição mais frágil, enquanto habilidades
altamente destrutivas apenas podem ser usadas quando estamos mais bem
alimentados e robustos.
Assim, e
consoante os desafios que temos perante nós, vamos tendo de gerir o nível de
evolução do nosso monstro, aumentando-o com o consumo de humanos que habitam o
edifício ou reduzindo-o com o largar de massa nos locais específicos para o
efeito. Deduzir o que temos de fazer a seguir costuma ser fácil, sendo que o
desafio consiste, por vezes, em executar as ações corretamente ou
atempadamente. Isto evidencia um design cuidado dos vários níveis, uma vez que nunca
é frustrante regressar a ecrãs passados quando nos deparamos com um obstáculo,
mas continuamos a sentir-nos desafiados o suficiente no momento em que fazemos
o que precisamos para ultrapassar esse obstáculo.
De referir que Carrion
apresenta um mapa cujas áreas e níveis podem ser revisitados depois de
conquistados. Este revisitar e reexplorar das áreas é incentivado com a
existência de vários jarros de ADN espalhados pelo edifício do qual tentamos
escapar, cada qual nos dá um ligeiro upgrade – por exemplo, uma maior barra de
energia, necessária para a utilização de algumas das nossas habilidades. A
maioria destes jarros não pode ser encontrado na primeira vez que se atravessa
uma zona, sendo normalmente necessário usar uma habilidade adquirida mais à frente na campanha. Ou seja, Carrion apresenta aqui
uma espécie de funcionalidade metroidvania na progressão da sua
campanha, cuja pertinência levanta algumas questões.
Se por um lado
estes jarros estão sempre protegidos pelos puzzles mais interessantes e
desafiantes do jogo – o que por si só confere algum valor a esta exploração
adicional do mundo -, esta implementação estilo metroidvania não assenta
bem em Carrion. A ligação entre as várias zonas do edifício é feita
através de uma área central que o jogo mascara muitíssimo bem, fazendo-a
parecer parte de um todo linear. Apenas na última meia hora das cerca de 6
horas de jogo é que fica bastante clara esta separação entre áreas e como estas
podem ser novamente acedidas. Ou seja, só já muito perto do fim da campanha é
que somos propriamente incentivados a revisitar e explorar de novo áreas já
conquistadas. Se esta falta de incentivo para uma exploração constante não
bastasse, a verdade é que todos estes upgrades nos serão completamente inúteis
para o pouco que resta do jogo.
Assim, não
conseguimos deixar de pensar que tudo isto foi uma adição algo atabalhoada a Carrion,
numa tentativa de estender artificialmente a sua duração ou até de ir ao
encontro das modas atualmente em vigor nos jogos independentes em 2D. Se nos
fosse possível escolher, preferíamos que esta fosse uma experiência verdadeiramente
linear, com estes upgrades escondidos sem depender de habilidades ainda não
obtidas. Isto tornaria a exploração uma componente mais significativa da
experiência, recompensando atempadamente os jogadores que se dessem ao trabalho
de inspecionar minuciosamente os ambientes.
Olhando para
aspetos mais técnicos, não podemos não começar por elogiar a vertente gráfica
de Carrion. Com uma direção artística pixelizada e com uma utilização
muitíssimo bem conseguida da cor, é um autêntico deleite contemplar o aspeto do
jogo. Os ambientes são riquíssimos em detalhes tanto no pano de fundo como nas
áreas sob o nosso raio de ação. Para além disso, ver as personagens humanas a
reagirem à nossa presença e aos nossos ataques, bem como ver como os vários
objetos ambientais se destroem consoante as nossas ações, revela um grande
cuidado no que às animações diz respeito. Toda a vertente visual do jogo é, sem
dúvida, um dos grandes pontos altos da experiência aqui proporcionada.
Por falar nas
reações do mundo às nossas ações, há que dar relevo ao trabalho de som aqui
desenvolvido. Todos os efeitos sonoros de objetos a serem destruídos, de
humanos aterrorizados com a nossa destruição selvagem, ou até dos rugidos
imponentes da nossa criatura, estão estupendamente bem conseguidos. Não havendo
qualquer defeito a apontar a estes efeitos, temos de reconhecer que a música
não tem o mesmo impacto, passando muito despercebida. Nos momentos de combate a
música faz-se notar um pouco mais, acentuando um pouco os conflitos, mas
ficamos com a sensação de que esta poderia ter elevado mais o geral da
experiência.
Para terminar,
olhemos para o desempenho de Carrion. O jogo corre sempre de forma
consistente a 30 fotogramas por segundo, nunca baixando deste valor independentemente
do quão frenética a ação se pode tornar no ecrã. Isto é o esperado para um jogo da PS4,
mas tendo em conta que passámos por esta experiência numa PS5, talvez tivesse
sido mais agradável não termos este limite imposto. De resto, os tempos de
carregamento foram os esperados, nunca muito longos, mas também não tão instantâneos
como talvez um jogo tão pouco exigente pudesse conseguir.
Conclusões
Ao virar os papéis dos
heróis e dos vilões ao contrário, Carrion proporciona uma experiência singular e
divertida. Encarnar literalmente um monstro e causar caos e destruição é
catártico, e juntar a isto tudo uma narrativa surpreendentemente apelativa faz
desta uma experiência bastante completa. Fica um pouco aquém num aspeto ou
outro, nomeadamente no que toca aos incentivos e recompensas pela exploração
cuidada do mundo, mas Carrion nunca deixa de ser um jogo extremamente recomendável.
O Melhor:
- Jogabilidade
divertida e simples de compreender
- Bom leque de
poderes por onde escolher para utilizar em cada situação
- Puzzles que nos
obrigam a dominar por completo todas as mecânicas
- Direção artística
pixelizada bastante apelativa
O Pior:
- Vertente de
exploração “metroidvania” mal
conseguida
- Alguma inconsistência
na dificuldade
Pontuação do
GameForces – 8/10
Título: Carrion
Desenvolvedora: Phobia
Game Studio
Publicadora: Devolver
Digital
Ano: 2021
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do
jogo para a PlayStation 4, através de um código gentilmente cedido pela Devolver
Digital.
Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
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