Carrion [PS4] – Ser Mau Nunca Foi Tão Bom


É inegável que o género de terror tem sempre algo de cativante. É impossível não torcer por Ripley quando esta enfrenta os implacáveis xenomorfos em Alien, ou pelos adolescentes perseguidos por vilões como Freddy Krueger ou Jason Voorhees, em Nightmare on Elm’s Street e Friday the 13th respetivamente. Mas por muito que gostemos de ver personagens a superarem-se e a derrotarem forças impiedosas muito mais poderosas, por vezes pode ser divertido sermos os monstros ou os maus da fita. E é aqui que Carrion entra, colocando-nos num cenário perfeito para uma experiência de terror, mas invertendo os papéis habituais. Será Carrion uma experiência monstruosamente boa, ou apenas um jogo que nos deixará a gritar de desespero?
 

Em Carrion, encontramo-nos enclausurados num complexo edifício localizado debaixo de terra, repleto de cientistas que estão a conter e a estudar um estranho monstro. Em vez de assumirmos o papel de um dos variadíssimos humanos aqui contidos, somos colocados na pele – ou no conjunto de músculos e cartilagens, melhor dizendo – deste monstro. Assim que quebramos o contentor que nos confinava, o nosso objetivo é levar este monstro a encontrar uma forma de escapar deste vasto edifício, destruindo e consumindo tudo e todos os que, entretanto, se atravessem no nosso caminho. Esta inversão de papéis é uma proposta imediatamente apelativa e distinta, levando-nos a questionar como é que algo deste género não é mais vezes tentado na indústria dos videojogos.
 
Mas Carrion não se fica por uma premissa apelativa, expandindo-a com uma narrativa também ela interessante. Esta é maioritariamente contada de forma subtil, através de pistas ambientais como letreiros eletrónicos e indicações nas paredes, mas também através de algumas sequências jogáveis que se apresentam sob a forma de flashbacks. As últimas acrescentam bastante à história, contando como o nosso monstro foi originalmente descoberto e capturado. Não sendo um argumento que vá ganhar prémios pela sua escrita, não deixa de ser uma surpresa agradável ver o empenho dos produtores em oferecer uma experiência mais completa que vai para além da destruição desmiolada por parte de uma criatura selvagem.
 

Com isto não queremos sugerir que a destruição desmiolada de tudo o que nos aparece à frente seja pouco apelativo. Bem pelo contrário, Carrion está no seu auge quando nos deixa à solta para selvagemente partir tudo e matar todos os que se encontram numa sala. O prazer desta experiência deve-se muito à jogabilidade simples e de fácil compreensão. Fazer o nosso monstro navegar pelos ambientes bidimensionais é intuitivo, e usar os nossos tentáculos para agarrar objetos e/ou pessoas é simples de compreender e sempre divertido. Ao longo da campanha, vamos explorando várias áreas e adquirindo várias habilidades que nos permitem novas maneiras de interagir com os ambientes e novas formas de causar o caos, dando-nos sempre um bom leque de opções de encarnarmos na perfeição um monstro descontrolado.
 
Há aqui um equilíbrio cuidado de modo a nunca deixar que o nosso monstro seja excessivamente poderoso ao ponto de poder atravessar este edifício a correr e sem qualquer cuidado. Este equilíbrio é alcançado através dos inimigos humanos que empunham armas, como metralhadoras ou lança-chamas, ou que podem até controlar construções robóticas com um poder de fogo considerável. Há outras ocasiões onde a estrutura labiríntica nos obriga a deixar uma boa parte da nossa massa muscular e tentacular para trás de modo a podermos avançar pelo edifício, deixando-nos naturalmente menos robustos e mais expostos aos inimigos armados.
 
Estas tentativas de equilíbrio tornam Carrion um jogo com um nível de desafio sempre agradável e muito pouco frustrante. No entanto, não podemos deixar de sentir algumas ocasiões onde existe alguma inconsistência na dificuldade. A dada altura, chegamos a uma área do edifício onde temos de explorar várias zonas na ordem que quisermos, e sentimos que havia uma zona claramente mais desafiante do que as restantes. Um outro exemplo foi quando nos deparámos com uma sala particularmente desafiante, apenas para todas as seguintes dessa área serem demasiado fáceis. Assim, ainda foram algumas as ocasiões nas quais sentimos alguma falta de afinamento no que ao desafio diz respeito, e não podemos deixar de sentir que houve alguma falta de cuidado nestas ocasiões.
 

Onde não sentimos qualquer desequilíbrio foi nos puzzles que Carrion coloca perante nós. Cada nível consiste num conjunto de ecrãs com ligações algo labirínticas que nos obrigam a prestar atenção aos ambientes de modo a descobrir como progredir. Para tal, temos de muitas vezes deixar o nosso monstro mais fraco ao abandonar alguma da sua massa de músculo e cartilagem para trás. Isto porque as várias habilidades que vamos adquirindo apenas podem ser utilizadas quando a nossa criatura apresenta um determinado tamanho ou robustez. Por exemplo, habilidades mais furtivas, como a invisibilidade ou o disparar silencioso de um tentáculo, estão limitadas a uma constituição mais frágil, enquanto habilidades altamente destrutivas apenas podem ser usadas quando estamos mais bem alimentados e robustos.
 
Assim, e consoante os desafios que temos perante nós, vamos tendo de gerir o nível de evolução do nosso monstro, aumentando-o com o consumo de humanos que habitam o edifício ou reduzindo-o com o largar de massa nos locais específicos para o efeito. Deduzir o que temos de fazer a seguir costuma ser fácil, sendo que o desafio consiste, por vezes, em executar as ações corretamente ou atempadamente. Isto evidencia um design cuidado dos vários níveis, uma vez que nunca é frustrante regressar a ecrãs passados quando nos deparamos com um obstáculo, mas continuamos a sentir-nos desafiados o suficiente no momento em que fazemos o que precisamos para ultrapassar esse obstáculo.
 

De referir que Carrion apresenta um mapa cujas áreas e níveis podem ser revisitados depois de conquistados. Este revisitar e reexplorar das áreas é incentivado com a existência de vários jarros de ADN espalhados pelo edifício do qual tentamos escapar, cada qual nos dá um ligeiro upgrade – por exemplo, uma maior barra de energia, necessária para a utilização de algumas das nossas habilidades. A maioria destes jarros não pode ser encontrado na primeira vez que se atravessa uma zona, sendo normalmente necessário usar uma habilidade adquirida mais à frente na campanha. Ou seja, Carrion apresenta aqui uma espécie de funcionalidade metroidvania na progressão da sua campanha, cuja pertinência levanta algumas questões.
 
Se por um lado estes jarros estão sempre protegidos pelos puzzles mais interessantes e desafiantes do jogo – o que por si só confere algum valor a esta exploração adicional do mundo -, esta implementação estilo metroidvania não assenta bem em Carrion. A ligação entre as várias zonas do edifício é feita através de uma área central que o jogo mascara muitíssimo bem, fazendo-a parecer parte de um todo linear. Apenas na última meia hora das cerca de 6 horas de jogo é que fica bastante clara esta separação entre áreas e como estas podem ser novamente acedidas. Ou seja, só já muito perto do fim da campanha é que somos propriamente incentivados a revisitar e explorar de novo áreas já conquistadas. Se esta falta de incentivo para uma exploração constante não bastasse, a verdade é que todos estes upgrades nos serão completamente inúteis para o pouco que resta do jogo.
 
Assim, não conseguimos deixar de pensar que tudo isto foi uma adição algo atabalhoada a Carrion, numa tentativa de estender artificialmente a sua duração ou até de ir ao encontro das modas atualmente em vigor nos jogos independentes em 2D. Se nos fosse possível escolher, preferíamos que esta fosse uma experiência verdadeiramente linear, com estes upgrades escondidos sem depender de habilidades ainda não obtidas. Isto tornaria a exploração uma componente mais significativa da experiência, recompensando atempadamente os jogadores que se dessem ao trabalho de inspecionar minuciosamente os ambientes.
 

Olhando para aspetos mais técnicos, não podemos não começar por elogiar a vertente gráfica de Carrion. Com uma direção artística pixelizada e com uma utilização muitíssimo bem conseguida da cor, é um autêntico deleite contemplar o aspeto do jogo. Os ambientes são riquíssimos em detalhes tanto no pano de fundo como nas áreas sob o nosso raio de ação. Para além disso, ver as personagens humanas a reagirem à nossa presença e aos nossos ataques, bem como ver como os vários objetos ambientais se destroem consoante as nossas ações, revela um grande cuidado no que às animações diz respeito. Toda a vertente visual do jogo é, sem dúvida, um dos grandes pontos altos da experiência aqui proporcionada.
 
Por falar nas reações do mundo às nossas ações, há que dar relevo ao trabalho de som aqui desenvolvido. Todos os efeitos sonoros de objetos a serem destruídos, de humanos aterrorizados com a nossa destruição selvagem, ou até dos rugidos imponentes da nossa criatura, estão estupendamente bem conseguidos. Não havendo qualquer defeito a apontar a estes efeitos, temos de reconhecer que a música não tem o mesmo impacto, passando muito despercebida. Nos momentos de combate a música faz-se notar um pouco mais, acentuando um pouco os conflitos, mas ficamos com a sensação de que esta poderia ter elevado mais o geral da experiência.
 
Para terminar, olhemos para o desempenho de Carrion. O jogo corre sempre de forma consistente a 30 fotogramas por segundo, nunca baixando deste valor independentemente do quão frenética a ação se pode tornar no ecrã. Isto é o esperado para um jogo da PS4, mas tendo em conta que passámos por esta experiência numa PS5, talvez tivesse sido mais agradável não termos este limite imposto. De resto, os tempos de carregamento foram os esperados, nunca muito longos, mas também não tão instantâneos como talvez um jogo tão pouco exigente pudesse conseguir.
 

Conclusões
Ao virar os papéis dos heróis e dos vilões ao contrário, Carrion proporciona uma experiência singular e divertida. Encarnar literalmente um monstro e causar caos e destruição é catártico, e juntar a isto tudo uma narrativa surpreendentemente apelativa faz desta uma experiência bastante completa. Fica um pouco aquém num aspeto ou outro, nomeadamente no que toca aos incentivos e recompensas pela exploração cuidada do mundo, mas Carrion nunca deixa de ser um jogo extremamente recomendável.

O Melhor:
  • Jogabilidade divertida e simples de compreender
  • Bom leque de poderes por onde escolher para utilizar em cada situação
  • Puzzles que nos obrigam a dominar por completo todas as mecânicas
  • Direção artística pixelizada bastante apelativa
O Pior:
  • Vertente de exploração “metroidvania” mal conseguida
  • Alguma inconsistência na dificuldade
 
Pontuação do GameForces – 8/10

Título: Carrion
Desenvolvedora: Phobia Game Studio
Publicadora: Devolver Digital
Ano: 2021

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a PlayStation 4, através de um código gentilmente cedido pela Devolver Digital.

Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Carrion [PS4] – Ser Mau Nunca Foi Tão Bom Carrion [PS4] – Ser Mau Nunca Foi Tão Bom Reviewed by Filipe Castro Mesquita on novembro 27, 2021 Rating: 5

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