Hades [PS5] - Do Inferno Ao Céu Num Instante


Há quase um ano atrás, a aclamada produtora independente Supergiant Games, responsável por grandes títulos como Bastion ou Transistor, estava a lançar mais um aclamadíssimo título para PC e para a Nintendo Switch. Falamos de Hades, o jogo que ombreou com os maiores lançamentos de 2020 por prémios de melhor jogo do ano (tendo até ganho alguns). Ao ver todo o sucesso e elogios que o jogo estava a receber, naturalmente que os jogadores da PlayStation ficaram com água na boca, aguardando pacientemente que Hades finalmente chegasse às consolas da gigante japonesa. Agora essa espera terminou, com Hades finalmente a chegar tanto à PlayStation 4 como à PlayStation 5. Terá esta espera de 11 meses valido a pena, ou será Hades uma desilusão infernal?


Em Hades, assumimos o papel de Zagreus, filho do deus grego do submundo e dos mortos, Hades. Ao descobrir a verdade sobre a sua genealogia, Zagreus sente-se compelido a rebelar-se contra o seu pai e escapar do submundo até chegar ao reino dos vivos. Mas Hades orgulha-se de ter sob a sua vigília um reino do qual é impossível escapar, e coloca todo o seu exército no caminho do seu filho, de modo a impedi-lo de cumprir o seu objetivo. Enquanto jogadores, é o nosso papel ajudar Zagreus a enfrentar as hordas de criaturas grotescas e implacáveis espalhadas por todo o reino dos mortos até conseguirmos chegar à superfície, com a nossa morte a significar um mergulho no rio Estige e o regresso imediato à nossa casa.
 
Como podem já ter deduzido por esta última frase, Hades é um jogo com um sistema de progressão roguelike. Cada vez que morremos e falhamos uma tentativa de fuga com Zagreus, somos transportados para o início do jogo, tendo de começar a demanda quase toda de novo. E dizemos quase toda porque, como é apanágio de jogos com este género de progressão, cada morte significa a perda de praticamente tudo o que amealhamos nessa tentativa, retendo apenas alguns poucos recursos. Estes serão depois aplicados para melhorar permanentemente algumas das nossas características ou habilidades, para melhorar o nível de afinidade com várias personagens, ou até para adicionar mais elementos ou salas benéficas aos percursos gerados aleatoriamente.
 
À primeira vista, e pela curta descrição feita até aqui do jogo, Hades pode parecer-se com um outro qualquer jogo de ação roguelike. Mas a verdade é que apresenta vários elementos e características que o distinguem como uma experiência soberba. Primeiro, o world building do jogo é absolutamente sublime, com um leque de personagens baseadas nas figuras da mitologia grega estupendamente bem caracterizadas e com as quais é sempre um prazer interagir – mesmo com o sempre mal-humorado progenitor infernal de Zagreus. Em cerca de 45 tentativas de fuga, não encontrámos uma única fala repetida nas interações com as dezenas de personagens. Bem pelo contrário, cada conversa que iniciamos resultou num desenvolvimento das relações de Zagreus com as inúmeras figuras mitológicas ou numa revelação de mais um detalhe ou outro acerca desta tirada da sempre fascinante mitologia grega.
 

Mas os méritos narrativos não se ficam por aqui, uma vez que o argumento está construído para se emparelhar perfeitamente com uma jogabilidade que tem de ser recomeçada uma, outra, e mais outra vez. Ao longo das cerca de 30 horas que jogámos, sentimos que a história justificou plenamente o porquê de todas as tentativas de fuga até atingirmos os créditos - e um pouco mais além. Mesmo cada falhanço era devidamente comentado pelos habitantes da casa de Hades, e vários dos reencontros com bosses geraram diálogos coerentes com os acontecimentos de batalhas anteriores, detalhes que apreciámos bastante. Tudo isto resultou numa história meticulosamente construída, com momentos divertidos, tensos e genuinamente emotivos.  No final de contas, não será exagero afirmar que a narrativa de Hades foi, até hoje, a que melhor partido conseguiu tirar da estrutura de jogos roguelike, com a história e as mecânicas de progressão a potenciarem-se mutuamente.
 
Mergulhemos agora na crème de la crème deste título – a jogabilidade. Em cada uma das quatro áreas do submundo, temos de atravessar cerca de uma dezena de salas geradas aleatoriamente. Cada sala contém um número de armadilhas e de inimigos também aleatório (em quantidade e variedade), e temos de derrotar todos os inimigos para poder avançar para a próxima sala. Mas antes de avançarmos, temos de recolher uma recompensa que nos ajudará no que resta dessa tentativa de fuga, ou que servirá para investir de modo a melhorar a probabilidade de sucesso em tentativas futuras. Para mais, e salvo raras exceções, podemos escolher a sala na qual entramos a seguir, sabendo de antemão a recompensa que esta nos dará. Com cada recompensa a apresentar sempre valor para as nossas pretensões de fuga, isto leva-nos a ter de tomar decisões genuinamente complicadas, e ponderar bem se vale a pena arriscar benefícios imediatos ou apostar em investimentos a longo-prazo.
 
Para combater os variadíssimos inimigos e os exigentes bosses no final de cada área, podemos equipar Zagreus com uma de seis armas disponíveis, cada qual com o seu estilo de jogabilidade e mecânicas de combate específicas. Por exemplo, a espada leva-nos a adotar um estilo de combate ágil e de curta distância, a lança permite-nos combater com alguma velocidade e com um maior alcance, e o arco dá-nos ataques com alcances longos, mas reduz dramaticamente a nossa velocidade de combate. Embora haja armas mais gratificantes que outras, esta variedade permite-nos escolher o estilo de jogo que mais se adequa ao nosso gosto, ou ir trocando de estilo caso comecemos a sentir alguma repetibilidade.
 

Não que essa sensação seja provável, devido à variedade de habilidades não permanentes que vamos recebendo em cada tentativa de fuga. Estas apresentam-se sob a forma de benesses dos deuses do Olimpo, que desejam ajudar-nos a escapar do submundo. Cada deus oferece-nos habilidades bastante condizentes com a sua personalidade e/ou com as suas áreas divinas – Zeus oferece poderes que eletrocutam inimigos, Hermes confere melhorias às nossas capacidades de movimentação e esquiva, por aí fora. Cada benesse permite-nos escolher uma habilidade de três que nos são apresentadas, mas cada deus apresenta um leque incrivelmente amplo de diferentes habilidades que podem ser postas perante nós. Uma vez que podemos misturar habilidades oferecidas por diferentes deuses, as combinações de habilidades são quase ilimitadas, o que pode conferir a Hades uma profundidade estratégica sem paralelo para este género de jogos.
 
Tudo isto leva a uma experiência de jogo extremamente variada, onde cada tentativa de fuga é, de um modo geral, sentida como verdadeiramente única. Mesmo após as várias dezenas de tentativas que realizámos, há várias habilidades que ainda não tivemos a oportunidade de utilizar, e centenas de combinações por experimentar. Acrescentando a isto uma jogabilidade base simples de compreender – ataque normal, ataque especial, projétil e esquiva – e uma muito boa e criativa variedade de inimigos implacáveis, com especial ênfase nos bosses, estamos perante uma experiência viciante. Eliminar inimigos combinando ataques, esquivas e as habilidades que vamos recebendo dos deuses gregos é sempre divertido, desafiante e gratificante. E ao contrário do que acontece com outros roguelikes, nunca sentimos frustração por ter de começar tudo de novo no fim de uma fuga. Bem pelo contrário, Hades é daqueles jogos nos quais sentimos sempre aquele ímpeto de “só mais uma tentativa.”
 
O melhor é que esta vontade está presente mesmo depois de uma fuga bem-sucedida. Para além de ser preciso conseguir fugir do submundo 10 vezes para se concluir a narrativa principal, Hades continua a introduzir novas maneiras de variar a experiência após o primeiro sucesso. Para começar, desbloqueamos a possibilidade de investir um dos recursos permanentes nas nossas armas, conferindo-lhes novas habilidades ou mais poder. Depois, são-nos oferecidas uma série de opções para tornar a próxima fuga mais desafiante. Desde aumentar o dano que os inimigos desferem, até conferir aos bosses novas habilidades, há mais de uma dezena de aspetos do jogo que podemos ajustar para dificultar a nossa próxima fuga e, consequentemente, ganhar novos recursos permanentes. Se o jogo base por si só já é desafiante, brincar com estes modificadores pode tornar cada fuga uma experiência absolutamente brutal, mas é dificílimo resistirmos a experimentar jogar com uma ou várias destas opções de dificuldade ativas.
 

Mesmo após as tais 10 fugas bem-sucedidas, Hades justifica bastante bem a necessidade de continuarmos a fugir do submundo. Há para explorar várias narrativas secundárias que envolvem as inúmeras figuras mitológicas e lendárias com as quais interagimos e até um epílogo que é a cereja no topo do bolo desta narrativa. Juntando isto com a vontade de experimentar todas as habilidades e os modificadores de dificuldade, estamos perante um pós-jogo extremamente amplo e no qual se pode conseguir tirar mais de uma centena de horas de diversão. Contudo, há que lamentar que o epílogo esteja “escondido” atrás de um longuíssimo processo de maximização da afinidade com os vários deuses que nos conferem benesses. Com a aleatoriedade das recompensas das salas, bem como a aleatoriedade dos deuses que surgem para nos ajudar em cada fuga, é necessária uma sorte tremenda ou uma dedicação quase exclusiva a Hades durante semanas a fio para se chegar ao tão ansiado epílogo.
 
Se este pode ser encarado como um problema algo superficial, Hades apresenta outra falha mais prejudicial. Toda a ação decorre de um ponto de vista isométrico, com a câmara sempre fixa. Visto que cada sala se apresenta decorada com pilares e outros elementos coerentes com a temática da área do submundo onde nos encontramos, o jogo acaba por tornar estas decorações translúcidas sempre que a ação se desloca para trás das mesmas. De um modo geral, esta opção de design funciona bem. Mas há alguns momentos onde a transparência não é bem aplicada a alguns elementos nas salas, sobretudo nas suas bordas, prejudicando a nossa visibilidade e podendo levar-nos a sofrer dano desnecessariamente. Esta falha é surpreendente por sermos incentivados a encurralar inimigos contra paredes e outros objetos, ações que nos conferem um bónus no dano causado aos mesmos. Para mais, este problema é sobretudo danoso por ser mais comum na área do submundo com os inimigos mais desafiantes e implacáveis, podendo levar a ocasiões de frustração.
 

Olhando agora para alguns aspetos mais técnicos de Hades, comecemos pela vertente visual. O jogo apresenta uma direção artística colorida que salta à vista e uma qualidade de imagem extremamente nítida. Todos os detalhes ambientais estão meticulosamente desenhados, os designs das personagens e das criaturas evidenciam um nível de criatividade bastante acima da média, e as animações são absolutamente exímias. É um deleite para os olhos explorar a casa de Hades, as várias regiões do submundo e ver as explosões de cores e brilho que acontecem no ecrã durante os momentos de combate. É sem dúvida um dos grandes pontos altos da experiência, e um dos aspetos que promove a vontade de continuar a jogar assim que terminamos uma tentativa de fuga.
 
Para acompanhar a estupenda direção artística e visual, Hades apresenta ainda uma direção sonora igualmente excelente. A banda sonora do jogo é extraordinariamente cativante, quer no contexto do jogo e dos seus acontecimentos, quer fora. A utilização de sons leves nos momentos de exploração e de música rock nos momentos de combate contra inimigos e bosses contribui significativamente para a coerência de toda a experiência. Os efeitos sonoros ajudam também a dar impacto sempre que infligimos dano num adversário, que somos danificados ou que utilizamos uma habilidade especial, contribuindo para a elevação da experiência de jogo. Uma nota de destaque também para o trabalho dos atores de voz, que ajudam a dar vida e a personificar muitíssimo bem todas as personagens do jogo, deixando-nos sempre com vontade de ouvir todas as falas que Hades tem para oferecer.
 
Por fim, e olhando para aspetos do desempenho do jogo, não temos um único problema a apontar. A experiência decorre sempre a 60 fotogramas por segundo, contribuindo para uma navegação e situações de combate bastante fluídos, com alguns momentos de desaceleração intencional para marcar o fim de um confronto ou o sofrer de um ataque particularmente impactante. Não nos deparámos com qualquer bug, qualquer erro gráfico ou sonoro, nem qualquer atraso de input, não sendo por aqui que uma run resulta em insucesso. Se há algo a lamentar no meio de tudo isto, é o facto de Hades não tirar partido das funcionalidades do DualSense. Com armas que afetam tanto o estilo de jogo e com tão variadas habilidades, não podemos deixar de imaginar como o feedback háptico, por exemplo, poderia ter sido implementado para ampliar o envolvimento na experiência, embora reconheçamos que apontar isto como uma crítica talvez seja demasiado minucioso.
 

Conclusões
Hades é uma experiência sublime, e certamente merecedora de todo o louvor que tem recebido ao longo deste último ano. Com uma jogabilidade com tanto sumo e que apenas conseguimos descrever como viciante, com uma das mais apelativas vertentes visuais e sonoras que se pode encontrar, e com uma narrativa tão bem escrita, não temos qualquer dúvida de que Hades é um dos melhores jogos atualmente disponíveis para a PlayStation 5, e muito provavelmente o melhor roguelike produzido até à data.
 
O Melhor:
  • Jogabilidade sempre bastante apelativa e gratificante
  • Variedade impressionante de habilidades que fazem cada tentativa parecer genuinamente única
  • Direções artística e sonora simplesmente esplêndidas
  • Argumento cativante, emotivo, com personagens muitíssimo bem escritas, e que tira brilhantemente partido do género roguelike
 
O Pior:
  • A decoração das salas pode interferir com a visibilidade da ação
  • O pós-jogo requere uma dedicação demasiado extenuante
 
Pontuação do GameForces – 9/10
 
Título: Hades
Desenvolvedora: Supergiant Games
Publicadora: Private Division
Ano: 2021
 
Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Hades [PS5] - Do Inferno Ao Céu Num Instante Hades [PS5] - Do Inferno Ao Céu Num Instante Reviewed by Filipe Castro Mesquita on agosto 28, 2021 Rating: 5

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