Ao longo da década passada, Ace Attorney estava ao rubro. Enquanto outras propriedades da CAPCOM permaneciam na gaveta, incluindo a própria mascote da companhia, a série de advocacia recebia uma nova iteração quase anualmente, na Nintendo 3DS. No entanto, após o lançamento de Phoenix Wright: Ace Attorney – Spirit of Justice, aqueles que esperavam novos títulos da série ficaram a ver navios nos anos subsequentes.
Pelo menos, para os japoneses a espera começou mais tarde:
em 2017, eles puderam experienciar Dai Gyakuten Saiban 2, a conclusão de uma duologia
exclusiva para o Japão. Embora estes spin-offs seguissem uma estrutura
semelhante à dos jogos principais, alguns obstáculos se apresentavam à CAPCOM na
perspetiva de trazê-los para o ocidente, como a péssima performance comercial e a
presença de Sherlock Holmes, uma personagem que poderia levar a disputas de
direitos de autor nos EUA.
Felizmente, com The Great Ace Attorney
Chronicles, os títulos Dai Gyakuten Saiban finalmente chegaram ao resto do mundo –
dando aos fãs a oportunidade de conhecer dois jogos que seguem os princípios da
série principal, ao mesmo tempo que introduzem elementos diferenciadores. A
jogabilidade continua a assentar em julgamentos em que
procuramos desvendar o culpado de um assassinato, procurando buracos nos
testemunhos recorrendo à críptica evidência que recolhemos em segmentos de
investigação. Mas se os restantes jogos se passam nos EUA dos dias de hoje, The
Great Ace Attorney Chronicles centra-se na Inglaterra durante a era Vitoriana e
na jornada de Ryunosuke Naruhodo. Este jovem é o antepassado japonês de Phoenix Wright, que
embarca para Londres para aprender com o “mais avançado
sistema de justiça do mundo”, decifrando os mais rebuscados crimes que ocorrem na capital da Inglaterra.
Com esta mudança de paronama, a
duologia deixa para trás imensas das características tipicamente associadas a
Ace Attorney. Se Phoenix Wright e companhia recorriam a poderes místicos para expor
a verdade, Naruhodo conta unicamente com os seus dotes de dedução e persuasão. Onde
a série principal cria todo o tipo de localizações extravagantes, The Great Ace
Attorney introduz localizações tangíveis na cidade de Londres. Enquanto a mais recente
trilogia de Phoenix Wright conta imaginários conflitos conspiracionistas de escala nacional para enquadrar a
narrativa, a duologia constrói o seu enredo em torno do seu enquadramento
cultural.
Nunca antes um jogo da série teve
uma ambientação tão meticulosamente executada: o quotidiano do povo, o estado das
técnicas forenses e as invenções da década são sempre apresentados com admirável
fidelidade, seja nos contadores de gás que viram um ponto fundamental de
discussão ou num conjunto de utensílios cirúrgicos que aparece no fundo de uma sala
de autópsias e que é irrelevante para o enredo.
Talvez por este excelente
trabalho de enquadramento cultural é que vemos Herlock Sholmes como uma afronta
(sim, Herlock Sholmes, bastou uma letra fugir do sítio para que os conflitos de
copyright se desvanecerem). Juntamente com Iris Wilson, a criança prodígio
que o acompanha, Sholmes é responsável por uma vasta gama de invenções que entram
em conflito direto com a realidade do começo do século XX. Salvo numa única
instância, todas as engenhocas deste par apenas servem como evidência e não como mecânicas de jogabilidade. É pena que
os argumentistas tenham optado pela sua existência, quando estas quebram a imersão conseguida
com a representação de Londres apresentada.
Como se não bastasse, há momentos
em que Sholmes surge do nada no tribunal como um Deus ex machina nos segmentos de
julgamento, e resolve situações que poderiam ter sido
momentos altos no jogo se fosse o jogador o responsável pela sua resolução. Com este encerramento barato de conflitos, os
desenvolvedores acabam por roubar o jogador do que potenciais acontecimentos
marcantes e tacitamente evidenciam não serem capazes de dar uma resposta inteligente aos conflitos intrigantes que eles próprios levantaram.
De resto, as incongruências que resolvemos pela nossa própria cabeça foram elaborados na perfeição. Os segmentos de investigação são onde encontramos a evidência fundamental para resolver as contradições no nosso caminho, e se inicialmente maior parte do que encontramos parece trivial, os testemunhos nos julgamentos revelam a sua importância - substanciando a posição das personagens de que "o tribunal é o local onde a verdade vem à tona". É, aliás, surpreendente que a curva de dificuldade dos enigmas que resolvemos esteja numa gradual subida mesmo entre os dois jogos do conjunto. Todavia, ocasionalmente Sholmes surje precisamente nos momentos que poderiam ter sido especialmente desafiadores e resolve o nosso desafio, o que é uma profunda desilusão.
Mas não pensem que estamos descontentes com a inclusão do detetive, muito pelo contrário. Contraposto com as restantes personagens, Sholmes traz à narrativa uma energia caótica, e a sua presença domina todas as interações em que participa. Com o seu carácter excêntrico, a sua energia contagiante, uma disposição flutuante e um poder dedutivo que nem sempre acerta no alvo, é efetivamente uma personagem que contribui para o aprofundar do enredo e apresentação da história. Além disso, o impacto da personagem das obras de Conan Doyle na narrativa vai muito além de duas simples personagens especiais. Algumas das mais notórias aventuras e figuras associadas ao mais famoso detetive são re-imaginadas para integrar a história de The Great Ace Attorney Chronicles, sendo superficialmente familiares o suficiente para instigar a curiosidade, mas diferentes ao ponto de tornar os desenvolvimentos dos mistérios previsíveis.
Por fim, Sholmes é responsável
por introduzir uma nova mecânica aos momentos de investigação. Tal como nos jogos
anteriores, continuamos a examinar os locais relacionados com o crime para encontrar
evidências relevantes e a colocar perguntas pertinentes a todos os indivíduos implicados
no caso. Agora, entramos também em Dances of Deduction, segmentos de raciocínio
abdutivo em que juntamente com o famoso detetive deciframos pequenos mistérios, ao
observar atentamente a linguagem corporal do inquirido e os objetos que o rodeiam.
Se é sempre empolgante participar nesta acelerada torrente de deduções, maior parte das vezes estas não requerem qualquer raciocínio por parte do jogador. Sempre que temos de apontar algo suspeito no corpo da pessoa ou no local para onde estão a olhar, a quantidade de entidades que podemos submeter como resposta é demasiado limitada para que tenhamos qualquer dúvida do que o jogo aceita como solução.
Esta não é a única mecânica que
The Great Ace Attorney Chronicles acrescenta à jogabilidade dos jogos
principais. Durante os julgamentos, várias personagens podem testemunhar ao
mesmo tempo, proporcionando diferentes perspetivas do mesmo acontecimento e
podendo opinar relativamente ao que os outros dizem – uma mecânica importada de
Professor Layton vs. Phoenix Wright: Ace Attorney.
Além disso, o sistema de jurados
estreia-se, constituindo uma versão significativamente mais desenvolvida do sistema
apresentado em Apollo Justice. A qualquer momento do julgamento, os seis
jurados, escolhidos dentro da população de Londres, poderão determinar um
veredito de culpa. Como tal, Naruhodo é obrigado a reverter a decisão de pelo
menos quatro jurados para continuar o julgamento, ouvindo a explicação que cada um dá para as suas decisões
e encontrando duas afirmações que se contradigam.
Embora esta mecânica adicione uma
forma de persuasão interessante que não implica diretamente a apresentação de
evidência, sentimos que o seu potencial não foi totalmente explorado. Por
exemplo, estes desafios podiam ter sido palco de argumentos mais subjetivos,
que jogassem mais com emoções e com a individualidade das personagens do que
com puros factos. Uma hipótese interessante seria fazer personagens que
acusamos em casos anteriores deixarem os seus ressentimentos dominarem a sua
visão e estarem mais propensos a agir contra nós.
Isto para não falar do facto de estes
segmentos serem demasiado frequentes, acabando por banalizar um veredito que, em
qualquer outro Ace Attorney, constituiria o incontornável ponto de não retorno.
No entanto... acabo por não levar a mal, visto que nos dá mais oportunidades de
ouvir a majestosa faixa musical dedicada a estes segmentos. Cada composição de The Great
Ace Attorney é uma magnífica composição orquestral, encaixando na perfeição nos
momentos em que são usadas – como o tema energético que acompanha as ações de
Herlock Sholmes, e a composição elegante e estoica que toca no fundo dos sapientes argumentos do nobre melhor amigo
de Naruhodo.
Os diálogos estão igualmente bem conseguidos, fazendo jus ao seu variado e articulado elenco, ao mesmo tempo que
mantêm o humor e engenho dos jogos anteriores da série - assegurando que todos os que já estão habituados a este universo peculiar, em que cada
pessoa só tem uma peça de roupa e em que o seu destino é determinado pelo
trocadilho no seu nome, se sentem em casa. Cada uma das personagens tem o seu papel, tanto no
percurso de Naruhodo enquanto advogado em crescimento, como nos vários mistérios
da narrativa que se desenvolvem ao longo dos dois jogos incluídos neste
conjunto.
Estes spin-offs marcaram a
primeira vez que a CAPCOM apostou em contar a mesma história ao longo de múltiplos
jogos. Enquanto The Great Ace Attorney: Adventures é um exercício de worldbuilding,
em que conhecemos o paradigma do mundo e os seus mistérios e assistimos aos
primeiros passos de Naruhodo, The Great Ace Attorney: Resolve foca-se na
resolução progressiva de cada uma das incógnitas levantadas anteriormente. São
dois jogos que se complementam, não só nas suas temáticas, mas também por
partilharem exatamente as mesmas mecânicas e uma porção significativa das
músicas, das personagens e das localizações. Embora tenham sido lançados
separadamente, estes jogos fazem mais sentido quando enquadrados dentro do
mesmo pacote.
E não é só com estes jogos que podemos contar em The Great Ace Attorney Chronicles. Para além dos jogos em si, este conjunto inclui oito novos episódios extra como Escapades, colocando as personagens dos dois jogos em novas conjunturas. Foi criada uma galeria onde podemos ver ilustrações das personagens, bem como ouvir versões beta das músicas do jogo, linhas dubladas e clipes de voz das personagens. Os três fatos DLC lançados originalmente para Dai Gyakuten Saiban 2 também foram incluídos para uso em Resolve. Por fim, os treze vídeos “Ryunosuke Naruhodo's Seven Days of Sin” lançados nos dias que precederam o lançamento de Dai Gyakuten Saiban e dois vídeos mostrados exclusivamente em eventos podem ser assistidos dentro do jogo. É uma mão-cheia de conteúdos extra que exibe o empenho que a CAPCOM teve com este título e que garantirá que os estes serão preservados.. excetuando os casos Asinine Attorney de Dai Gyakuten Saiban 2, que seriam a cereja no topo do bolo.
Infelizmente a otimização do jogo
não foi abordada com o mesmo empenho. Até eu aplicar uma correção da comunidade,
a resolução de The Great Ace Attorney manteve-se inferior à definição 1080p que havia sido selecionada nas definições do jogo. De igual forma, ao longo da experiência deparamo-nos com ocasionais crashes,
que ocorriam após removermos saídas de áudio, ligarmos comandos por USB e em
alguns momentos sem qualquer motivo. Felizmente, The Great Ace Attorney
Chronicles possui uma função de gravação automática, que impediu que eu
perdesse mais do que cinco minutos de progresso.
Conclusão
Depois de meia década privada de Ace Attorney, The Great Ace
Attorney Chronicles não só sadia a sede por uma aventura nos tribunais de
qualidade como nos dá uma visão fresca do potencial da série, introduzindo um
carismático novo elenco, mecânicas inéditas e um tipo paradigma cultural. Tanto
fãs de longa data como novatos na série adorarão este excelente e completo
pacote.
O melhor:
- Enquadramento cultural elaborado;
- Excelentes personagens e diálogos;
- Banda sonora magnífica;
- Novos conteúdos extra;
- Mecânicas inéditas com potencial…
O pior:
- …mas que podiam ter sido melhor exploradas;
- Problemas de performance.
Nota do GameForces: 8.5
Publicadora: CAPCOM
Nota: Esta análise foi realizada com base na
versão digital do jogo para Steam, através de um código gentilmente cedido pela
CAPCOM.
Autor: Tiago Sá
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