Análise | God of War: Ragnarök – Oferta Divina


Se há algo que eu gosto é quando uma série me acompanha ao longo dos anos, não só marcando presença na minha vida, mas também refletindo o meu próprio crescimento. E no meu caso, não há melhor exemplo do que as aventuras do ex-deus da guerra conhecido como Kratos. As suas peripécias violentas foram um escape perfeito para quando eu era um adolescente nerd e zangado, e agora, enquanto adulto nerd e mais em controlo das minhas emoções, o renascer das cinzas deste protagonista ressoou bastante em mim. É, portanto, com enorme antecipação que pego em God of War: Ragnarök e me preparo mais uma vez para ver como me revejo nesta nova história de crescimento pessoal e relacional de Kratos e do seu filho Atreus. Será God of War: Ragnarök uma experiência intemporal merecedora de entrar em Valhalla? Ou deixar-nos-á com vontade de desejar a chegada rápida do fim do mundo?


Em God of War: Ragnarök encontramos um Kratos e um Atreus mais velhos em alguns anos, e um mundo em pleno Fimbulvetr – o longo inverno que antecede o fim dos tempos conhecido como Ragnarök. Depois de conhecer uma profecia acerca do seu destino, Kratos insiste em treinar Atreus para que seja capaz de sobreviver a qualquer ameaça. Já um Atreus pré-adolescente continua sem saber quem é e qual será o seu papel na derradeira batalha que se avizinha, tentando desvendar o seu destino à revelia do seu pai. Mas tudo é precipitado quando os deuses de Asgard se põem em marcha, levando Kratos e Atreus a ter de fazer os possíveis para enfrentar e sobreviver às novas ameaças que vão sendo colocadas nos seus caminhos.

Se à superfície esta parece ser mais uma história simples, desenganem-se. Este é um jogo com uma história de proporções épicas que anda à volta de temáticas complexas como o amor entre um pai e um filho, predestinação contra livre-arbítrio, redenção ou reincidência em velhos hábitos e vícios, e valor da vingança contra o valor do perdão. Já parece mais complexo, não é? Mas God of War: Ragnarök faz um belíssimo trabalho em descomplicar estes temas, introduzindo-as e resolvendo-as com um brilhantismo como nem eu, nos meus dias mais otimistas, acharia possível. 

Todas estas temáticas estão incrivelmente bem misturadas nos arcos narrativos de Kratos, Atreus, ou Freya, bem como nos arcos de alguns dos antagonistas mais memoráveis dos últimos tempos, como os de Thor ou Odin. Ver como cada personagem começa e acaba nesta narrativa é impressionante e imprevisível, com todos, mas todos os momentos de desenvolvimento a serem credíveis e impactantes. Os pontos altos da história são dos mais altos que já vi nesta indústria, os “socos emocionais” são poderosíssimos, e as reviravoltas deixaram-me literalmente com as mãos a tentar tapar a minha boca aberta. Ultimamente, têm sido poucas as histórias que me agarram logo no primeiro minuto e me mantêm pregado ao ecrã e ao comando até ao fim, mas louvados sejam os deuses, esta história agarrou-me e ainda não me largou – mesmo uma boa semana depois de a ter acabado, não consigo parar de pensar nela.


Portanto sim, se a história do jogo de 2018 já era excelente, esta eleva ainda mais a fasquia. Mas atenção, que não é só da narrativa principal que falo, mas também de todo o conteúdo secundário e pós-jogo. As missões secundárias deixaram de ser tarefas acessórias, passando a contribuir imenso para o aprofundamento da história do mundo e para o percurso narrativo de várias personagens. As missões de pós-jogo aprofundam as implicações do desfecho da história principal e atiram-nos ainda com mais uma reviravolta ou duas incrivelmente impactantes e memoráveis. Mesmo os pequeninos colecionáveis se apresentam como veículos narrativos interessantíssimos – sim, mesmo a caça aos corvos, que era uma distração da treta no jogo anterior, tem aqui um desfecho que vale mesmo a pena o esforço.

Acreditem, God of War: Ragnarök merece que se veja e viva tudo o que tem para oferecer, e nem precisa de pedir que o façamos – nós ficamos com uma vontade genuína de revirar cada pedra posta no jogo. Até porque muito provavelmente vai demorar um bom bocado até surgir outro jogo tão incrivelmente bonito quanto este, seja em que consola for ou sejam quais forem as capacidades das próximas placas gráficas.

Se God of War: Ragnarök começa com praticamente tudo em tons de azul e cinza – afinal de contas, Midgard está a passar pelo tal longo inverno -, assim que viajamos para outros reinos rapidamente regressamos à explosão de cores e vivacidade que já tínhamos vivido em 2018. Muitos destes reinos são reincidentes, como Alfheim ou Helheim, mas desta vez a aventura leva-nos a explorar todos os reinos da mitologia nórdica, incluindo Svartalfheim, Vanaheim ou Asgard. Mais uma vez, cada reino apresenta-se como um pequeno mundo aberto que podemos explorar à nossa vontade, desde que tenhamos as ferramentas necessárias para desbloquear todos os seus caminhos. Esta exploração ocupou-me a grande maioria das cerca de 56 horas que já passei neste jogo. E não foi só por causa dos colecionáveis necessários para a platina, mas sobretudo porque fiquei deslumbrado com o detalhe ambiental.


God of War: Ragnarök é um jogo lindíssimo. A variedade arquitetónica e ao nível da fauna e flora entre cada reino é incrível, o nível de detalhe de cada pequenina textura é impressionante, e todas as vistas são de se ficar sem fôlego. Nem vos sei dizer a quantidade de vezes que fiquei simplesmente parado a admirar o detalhe e a beleza de uma paisagem, ou simplesmente parado porque estava convencido que o jogo ainda estava numa sequência cinemática quando afinal não. Ah sim, porque diferenças gráficas entre estar em controlo ou estar a ver uma cena programada a desenrolar-se são zero. A nitidez, as animações, o detalhe e a fidelidade são sempre impressionantes. E claro que o truque da “câmara única” está de regresso, dando a toda a experiência um nível de imersão imensurável.

E nenhuma história poderia ser tão impactante se as animações das personagens não estivessem no ponto. Os movimentos são todos tão fluidos, quer estejamos simplesmente a andar pelo mundo, a trepar paredes rochosas ou a enfrentar inimigos com um décimo do nosso tamanho ou 10 vezes maiores. Aqui há, claro, muitíssimo mérito da direção artística e dos animadores, mas também dos atores. Todos os atores e todas as atrizes, sem falta, fizeram aqui um trabalho exemplar do qual se poderão orgulhar para o resto das suas vidas. Tanto ao nível da captura motora como ao nível dos desempenhos de voz, está tudo perfeito. Não há uma fala cuja entrega eu tenha ficado a achar que poderia ter sido melhor, não há uma falha na voz que esteja a mais, não há uma expressão não-verbal que choque com o tom da cena. Faço uma vénia a Christopher Judge, Sunny Suljic, Danielle Bisutti, Ryan Hurst e todo o restante elenco, sem tirar nem pôr.

E a música? Pelos deuses, a música volta a ser fenomenal. A mistura de elementos musicais dos jogos da era da mitologia grega com trilhas produzidas para os dois jogos mais recentes volta a dar um impacto brutal em algumas das cenas em que Kratos parece estar a recair em velhos hábitos. Os sons com ritmos mais acelerados ou com ritmos mais suaves enaltecem, respetivamente, as cenas mais trágicas ou ferozes e as cenas mais emocionais e de reflexão. E todos os pequenos efeitos sonoros, como guinchos monstruosos dos inimigos ou o choque do metal das nossas armas contra a carne das criaturas que enfrentamos voltam a ser impecáveis e a cumprir com distinção o objetivo de dar mais peso e impacto do combate.


E já que falo nisso, sim, o combate é mais um aspeto onde as melhorias entre a entrada de 2018 e este jogo voltam a ser bastante palpáveis. Cada uma das três armas com que terminamos o jogo tem uma “skill tree” mais ampla do que antes, com mais capacidades para usar em combate. Voltamos a ter habilidades rúnicas equipáveis para cada arma – uma forte e uma fraca -, também aqui em número maior e com utilidades mais variadas. Podemos também equipar diferentes escudos cujas capacidades se focam em vertentes de jogabilidade diferentes – defesa máxima, contra-ataque, atordoamento, entre outras. Outra novidade é o facto de podermos equipar uma de várias relíquias que nos permitem usufruir de habilidades diferentes em combate ou, em alguns casos, desvendar mistérios espalhados pelo mundo.

Somado a isto tudo, temos ainda a possibilidade de voltarmos a personalizar muito do que equipamos em Kratos (e não só). É possível equipar diferentes armaduras, cada qual confere um boost a algumas estatísticas possíveis (por exemplo, vida, ataque, defesa ou sorte), ou até equipar cada arma com novos cabos ou punhos que também interferem nessas estatísticas. God of War: Ragnarök incorpora estes elementos de RPG, mas não é nem tenta ser um. Jogar como Kratos é jogar como Kratos – os ataques base e as suas combinações são sempre iguais, são sempre impactantes e brutas independentemente de como equipamos o antigo deus da guerra. Mas estes equipáveis parecem influenciar mais os resultados nas nossas ações e dos confrontos com inimigos, sendo aqui possível criar builds diferentes e verdadeiramente adaptáveis a cada situação que temos de enfrentar.

E sim, sem me alongar muito para não entrar em terrenos repletos de spoilers, Kratos não é a única personagem jogável, e Atreus não é o único companheiro que vamos tendo ao longo da história. Vou só dizer rapidamente que a outra personagem jogável tem um estilo bem diferente do de Kratos, mas é tão divertido jogar com ele ou ela. Já as diferenças entre os companheiros não são tão acentuadas quanto isso, ocorrendo mais para desenvolver personagens ou alguns elementos da história. Apesar de desejar que essas diferenças fossem mais visíveis, os momentos narrativos que se propiciam são tão bons, que não prejudica minimamente a minha impressão geral do jogo.


Agora, olhando para a diversidade dos inimigos, uma das vertentes mais criticadas de God of War (2018) – e bem, na minha opinião -, tenho imenso gosto em verificar que Ragnarök vai diretamente ao encontro das críticas. Os minibosses já não são todos trolls com tons de pele distintos, e os inimigos já não são quase todos draugr. Há muitíssima mais variedade de inimigos comuns, de bosses e de minibosses, e, consequentemente, os confrontos com inimigos destas duas últimas categorias são bastante mais memoráveis e deixam uma impressão bem mais duradoura. Há minibosses reincidentes, não há que o negar, mas mesmo esta repetição está muito bem incorporada na narrativa e na história do mundo que estamos a explorar. Para além disso, todos os inimigos se apresentam como muito mais capazes e inteligentes desta vez. Cada criatura tem um leque maior de habilidades e de estratégias de combate que vai variando bastante bem consoante a situação, obrigando-nos a estar sempre atentos e preparados para mudar de e tática quando necessário.

O único defeito para o qual me parece não haver grande justificação prende-se com a resolução de puzzles. Se eu me considero uma pessoa impaciente, nem sei como qualificar Mimir e os outros companheiros de viagem que vamos tendo, porque a sua intolerância a puzzles é incrível. Sempre que chegava a um puzzle, bastava perder 20 segundos a observar os seus mecanismos ou ambiente circundante que era logo bombardeado com uma indicação do género “é isto que tens de fazer” ou “a solução está ali.” Tudo isto faz-me sentir bastante melhor em relação à minha impaciência, mas preferia que o jogo não me quisesse segurar na mão sempre que atravessava uma rua – até porque enquanto homem com 30 anos, é uma imagem um bocado embaraçosa.

E só porque sei que alguns de vocês o irão questionar por serem incrivelmente picuinhas com estas coisas – ou seja, por serem exatamente como eu -, sim, voltamos a ter vários corredores apertados através dos quais nos arrastamos lentamente, e a viagem entre reinos volta a pôr-nos naquele percurso entre mundos onde temos de esperar que um portal se abra. Mas estes momentos aqui são muito melhor concretizados. Ainda que possam ser necessários para os loadings se estiverem a jogar numa PS4 (na PS5 certamente não o são), estes momentos são sempre aproveitados para introduzir um interessante diálogo entre as personagens ou para mais um momento de exposição que aprofunda ou contextualiza a história ou o reino onde nos encontramos. Ou seja, estes momentos estão aqui disfarçados como narrativos – e como a narrativa é  sempre excelente, o que poderia ser visto como algo chato passa a ser algo sempre interessante.


Para terminar em beleza, quero só referir que God of War: Ragnarök corre na perfeição. Os tempos de carregamento entre mortes são rapidíssimos, o jogo corre impecavelmente e sem qualquer quebra a 60 fotogramas por segundo nos modos de desempenho, e as utilizações do feedback háptico e dos gatilhos adaptativos não é exagerada, estão no ponto certo. Graficamente não houve um único soluço, no que toca ao som foi sempre tudo perfeito, e num jogo tão amplo, tão longo e com tanto para ver e fazer, tive apenas um bug menor e de fácil resolução – um companheiro a ficar parado depois de descer uma corrente, mesmo ao lado de um portal para viajar entre reinos que resolveu o assunto.

Seja qual for o ângulo a partir do qual olhamos para God of War: Ragnarök, estamos perante um jogo que roça a perfeição. Não é só um dos melhores jogos do ano, é, na minha opinião, um dos jogos mais bem conseguidos de sempre. Assim que o acabei, fiquei com vontade de recomeçar tudo, de rejogar God of War (2018) e esta sequela para viver estas aventuras do início ao fim outra vez. E, se calhar, vou aproveitar que o código que nos foi fornecido (e pelo qual estamos imensamente gratos, claro) incluir também a versão PS4 do jogo para platinar God of War: Ragnarök pela segunda vez – e, sem dúvida, voltar a divertir-me à brava enquanto o faço.


Conclusões
God of War: Ragnarök é simplesmente uma experiência divinal, a todos os níveis. De alguma forma, consegue melhorar em tudo face à fenomenal entrada de 2018. A história, a jogabilidade, o design ambiental, a consistência técnica, os desempenhos – é tudo absolutamente impecável. Esta obra de arte é desafiante, é impactante, é empolgante, é emocionante, é tocante e é belíssima. Por tudo e mais alguma coisa, este é um título que merece entrar para o panteão de uma das melhores obras da nossa indústria. Não há jogos perfeitos, mas raios me partam se God of War: Ragnarök não está incrivelmente perto dessa proeza.

O Melhor:
  • A história é constantemente intrigante e emotiva, com imensos pontos altos;
  • As missões secundárias e o pós-jogo são sempre envolventes;
  • Os desempenhos de todos os atores estão perfeitos;
  • Visualmente é um jogo diverso e com alguns dos ambientes mais belos de contemplar;
  • A jogabilidade é bastante diversa e personalizável;
  • O combate é impactante e desafiante, com inimigos mais variados e mais inteligentes;
  • É praticamente perfeito de um ponto de vista técnico.

O Pior:
  • Companheiros demasiado metediços na resolução de puzzles.
 
Pontuação do GameForces – 10/10

Título: God of War: Ragnarök
Desenvolvedora: Santa Monica Studio
Publicadora: PlayStation Studios
Ano: 2022
 
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a PlayStation 5, através de um código gentilmente cedido pela PlayStation Portugal.

Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Análise | God of War: Ragnarök – Oferta Divina Análise | God of War: Ragnarök – Oferta Divina Reviewed by Filipe Castro Mesquita on dezembro 01, 2022 Rating: 5

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