Após esgotar todos os jogos Ace
Attorney e terminar o par de títulos AI: The Somnium Files, chegou a hora de eu saltar para mais uma série de visual novels: a saga Science Adventure.
Esta franquia divide-se em várias subséries (como Steins;Gate e Robotics;Notes),
cada uma introduzindo os seus elementos de ficção científica únicos, mas todas
integrando o mesmo universo interconectado.
Apesar da popularidade de Science
Adventure dentro dos entusiastas do gênero, o título inaugural da série, CHAOS;HEAD NOAH, não
estava disponível fora do ocidente desde o seu lançamento original em 2008. Oportunamente, no começo deste mês, esta
obra foi finalmente lançada em inglês para a Nintendo Switch e Steam,
permitindo que fãs do universo descubram esta história e que jogadores curiosos
em relação à série (como eu) possam usá-la como ponto de partida. No mesmo dia, a Nintendo Switch recebeu uma versão de CHAOS;CHILD, a sequência temática de CHAOS;HEAD NOAH, cuja análise podem ler aqui (preferencialmente, apenas após lerem esta ou terem jogado CHAOS;HEAD NOAH). Ambos os jogos podem ser comprados individualmente na Nintendo eShop ou numa edição física conjunta.
CHAOS;HEAD NOAH, em inúmeros aspetos, distingue-se das visual novels que li no passado. Enquanto que em Ace Attorney e AI: The Somnium Files os protagonistas são personagens carismáticas e estoicas com um fervoroso sentido de justiça, o protagonista de CHAOS;HEAD NOAH situa-se na ponta oposta do espetro da decência humana. Takumi Nishijou é um otaku que vive num contentor, onde passa os dias a jogar online, rodeado de figuras das suas personagens anime favoritas e da roupa e do lixo que preenchem as superfícies imundas desta “habitação”. Por se interessar apenas por “mulheres 2D” ficcionais, Takumi limita ao máximo o tempo de interação com o mundo externo, frequentando o mínimo de aulas necessário para não chumbar na escola, e é socialmente inapto, tremendo como varas verdes e conseguindo apenas balbuciar em qualquer interação humana. Como se não bastasse, este jovem é rude, cobarde, egoísta e irremediavelmente depravado, sendo sempre espantoso presenciar a sua capacidade de descer cada vez mais na nossa consideração.
E é precisamente por isso que ele é uma personagem principal fascinante: embora seja bastante arriscado ter uma personalidade tão antipática no centro da narrativa, Takumi, com os seus imensos defeitos e inseguranças, distancia-se profundamente dos usuais arquétipos de heróis, oferecendo-nos um ponto de vista deveras singular. Vê-lo a ser forçado a abandonar a sua zona de conforto, a recorrentemente dar tiros no pé e a sofrer psicologicamente não só pelo seu envolvimento nos desenvolvimentos da narrativa, mas também pelos seus próprios erros e limitações e a revelar crescimento pessoal gradual, tangível e credível, é refrescante e invulgar.
Previsivelmente, nada disto
acontece por interesse do sedentário Takumi, que prefere estar reservado no seu
cantinho. Mas se não vai Maomé à montanha, vai a montanha a Maomé: a sua existência solitária é colocada em causa
pela “New Generation Madness”, uma série de homicídios extremamente macabros em
Shibuya. Após receber fotografias do terceiro dos assassinatos um dia antes de este
acontecer e, no dia seguinte, acidentalmente presenciar o homicídio, o adolescente
é involuntariamente arrastado para os desenvolvimentos destes crimes enigmáticos
e perturbadores.
Estas circunstâncias em nada ajudam a cognição do nosso protagonista, que apresenta vários estigmas de esquizofrenia: Takumi sofre de delírios persecutórios, alucinações e ilusões, que distorcem a sua perceção da realidade. Como experienciamos esta aventura pelos olhos de Takumi, não podemos confiar em todos os acontecimentos que presenciamos. Consequentemente, em CHAOS;HEAD NOAH para além de tecermos hipóteses sobre os mistérios em si, podemos tentar decifrar quais evidências devemos ou não ter em consideração, numa dinâmica extremamente estimulante e singular.
Mesmo além desta inusitada
premissa, esta história mantém-se consistentemente intrigante e envolvente, introduzindo
novos acontecimentos e revelações a um ritmo excelente, não dando azo a
momentos mortos. Ainda assim, achamos fundamental que saibam que, à medida que a
narrativa progride, elementos sobrenaturais adquirem uma proeminência significativa,
definindo-se como um pilar da história inseparável das vertentes de ficção
científica e resolução de mistérios. Se tiverem esta nuance em mente e não
iniciarem a história com expectativas desajustadas, têm tudo para apreciar o
crescimento palpável e verosímil de Takumi, as interessantes personagens
secundárias e os excelentes mistérios e revelações de CHAOS;HEAD NOAH.
Ao longo dos eventos desta
narrativa, assumimos uma postura maioritariamente passiva, visto que existem
apenas duas formas de interatividade: raríssimas séries de questões (que não
testam as nossas capacidades dedutivas, mas sim a perceção da realidade de Takumi)
e o sistema de delírios (delusions). Em momentos específicos da
história, podemos decidir se Takumi sofrerá um delírio positivo, que
normalmente assume contornos humorísticos ou eróticos, se sofrerá um delírio
negativo, que tipicamente resulta em cenas violentas ou emocionalmente tensas,
ou se permanecerá com os pés assentes na realidade, sem vivenciar estes
episódios. Salvo alguns delírios negativos previsíveis, estas cenas extra são
um prazer de se assistir, levando ao absurdo os pavores e a perversidade do
protagonista.
Ao contrário dos episódios de psicose que integram a história, os delírios que podemos acionar são totalmente opcionais, não tendo repercussão nos acontecimentos principais. Tanto são totalmente opcionais que, durante a maior parte da minha primeira passagem pela narrativa, não fazia ideia da existência desta mecânica. Em nenhum momento CHAOS;HEAD NOAH explica o sistema de delírios: a singela informação que temos sobre o mesmo está no ecrã de controlos, com a indicação de que podemos usar ZL e ZR para selecionar o tipo de delírio que desejamos.
Este sistema deveria ser claramente explicado ao jogador visto que, para além de consistir na mecânica diferenciadora desta subsérie e de nos proporcionar vários momentos memoráveis, é também o método através do qual acedemos a diferentes ramos da narrativa de CHAOS;HEAD NOAH. Durante a vossa primeira leitura da aventura, apenas poderão alcançar um final; todavia, em leituras subsequentes, serão conduzidos a diferentes finais consoante os delírios que escolherem. Estas passagens adicionais pela história são encorajadas e facilitadas pelo Skip Mode, que nos permite saltar os diálogos previamente lidos. Todavia, o Skip Mode incompreensivelmente e frustrantemente não ultrapassa algumas falas específicas, mesmo que já as tenhamos lido múltiplas vezes no passado.
Embora o primeiro final de CHAOS;HEAD
NOAH seja totalmente satisfatório, estas rotas extra são imprescindíveis para
quem ficou investido nestes mistérios. Cada uma delas foca-se numa das desenvolvidas
e diversificadas personagens femininas do jogo, apresentando-nos cenários
hipotéticos que não só nos proporcionam um conhecimento mais profundo delas,
mas também resolvem os mistérios pendentes da história principal.
Após o término de todas as rotas opcionais, desbloquearão o final verdadeiro, que prometia ser um ponto final conclusivo na jornada por esta excelente visual novel. Prometia, mas não o é, por um simples motivo: é impossível concluir este final, uma vez que, perto do seu encerramento, o jogo é incapaz de avançar além de uma certa cena. Mais de duas semanas após o lançamento do jogo, este problema persiste, pelo que os interessados em concluir o jogo não têm outra escolha senão visualizá-lo de forma anticlimática em plataformas como o YouTube. Atualização (19/11/2022): Com a atualização 1.0.3 do jogo, este problema foi resolvido!
Foi, aliás, assistindo novamente
aos finais no YouTube que descobri outro problema com o jogo: a censura. Embora
CHAOS;HEAD NOAH seja recomendado para maiores de 18 anos pelas classificações
PEGI (Europa) e CERO (Japão) e não tenha receio de adotar ocasionalmente um tom sombrio, desconfortável e claustrofóbico, o argumento desta versão foi vítima de censura de linhas relacionadas com momentos marcadamente
grotescos e violentos. O exemplo mais ofensivo consiste num dos finais adicionais, que perdeu vários minutos de acontecimentos que, mais do que interessantes em si mesmos, eram fulcrais para a compreensão de
certos aspetos dos assassinatos.
Ainda no campo das falhas, CHAOS;HEAD
NOAH tem duas omissões bastante incómodas: a inexistência de demarcação entre
os pensamentos de Takumi e as falas verbalizadas (seja através de uma cor de
texto diferente ou aspas) e de uma indicação de qual personagem está presentemente a
falar. Se jogarem CHAOS;HEAD NOAH com som ligado, estes problemas são
mitigados: todas as linhas verbalizadas têm atuação por voz, tornando óbvio
quem está a falar num dado momento. Contudo, se precisarem de jogar sem som, precisarão
de prestar atenção constante aos movimentos das bocas das personagens, método
este exaustivo e que não é viável para todas as linhas.
Estes problemas são desapontantes
porque o trabalho de localização em si é bastante competente, pecando apenas
por ocasionais erros ortográficos e gramaticais. Existe um conjunto exaustivo
de dicas que contextualizam vários termos específicos da cultura japonesa,
permitindo assim que os diálogos de Takumi reflitam o seu estilo de vida reclusivo
sem que a compreensão das suas afirmações fique comprometida.
Ainda assim, a localização de
imagens com texto toma uma abordagem desmazelada: em vez de as imagens em si
serem traduzidas, legendas são adicionadas sob o texto em japonês. Em algumas
ocasiões, estas legendas são demasiado pequenas para que possam encaixar em
espaços pequenos, dificultando a sua leitura; noutras, diminuem o impacto que determinados visuais deveriam
ter; globalmente, todas estas situações afetam a nossa imersão.
Por seu lado, a remasterização gráfica, ao atualizar os ambientes e artes de personagem, é competente e permite que este jogo encaixe adequadamente nas plataformas modernas. Mesmo os menus e interface, que corriam o risco de parecerem datados, acabam por adequar-se estilisticamente e tematicamente ao jogo, dado o foco que é dado à cultura da primeira década de 2000. Finalmente, não podíamos encerrar esta análise sem deixar uma nota de apreciação ao design sonoro do jogo e à sua banda sonora que, pela sua elevadíssima qualidade, nos puxam para dentro desta rendição de Shibuya e para os acontecimentos bizarros que nela ocorrem.
Conclusão
Com um protagonista pouco tradicional, mistérios e peripécias bastante intrigantes e uma cadência de acontecimentos meticulosamente ponderada, CHAOS;HEAD NOAH entrega-nos uma história intrigante que é impossível de largar antes dos créditos. Se o conteúdo desta obra se mantém excelente quase 15 anos após o lançamento original, este lançamento é prejudicado por uma série de problemas inerentes ao trabalho de conversão e localização, como a impossibilidade de concluir o final verdadeiro do jogo (entretanto resolvido) e a censura de momentos da história importantes para a compreensão dos seus mistérios.
O melhor:
- Protagonista refrescante;
- História viciante do início ao fim;
- Integração estimulante de delírios na história principal;
- Localização competente;
- Rotas alternativas imaginativas e meritórias;
- Excelente ambientação sonora e faixas musicais;
- Retoques visuais benéficos.
O pior:
- Impossibilidade de terminar o final verdadeiro (Resolvido com a atualização 1.0.3);
- Distinção pouco clara entre falas e pensamentos;
- Sem explicação do sistema de delírios;
- Censura de acontecimentos importantes para o enredo;
- Localização de imagens com texto desmazelada.
Nota do GameForces: 8.0/10
Desenvolvedora: MAGES. Inc.
Publicadora: Spike Chunsoft
Ano: 2022
Autor da Análise: Tiago Sá
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