Vamos a um pequeno jogo: quantas análises
ou artigos aqui da GameForces é que já começaram com a frase “É no mercado
indie que encontramos as ideias e experiências mais únicas”, ou algo muito,
muito parecido? Exato, nem eu sei, e fui provavelmente o responsável por todas
essas ocasiões. Mas digo e escrevo isto tantas vezes por uma razão muito
simples: porque é verdade. Portanto, foi com grande entusiasmo que acolhi a
chegada de Inscryption às consolas PlayStation. Um jogo independente,
que mistura vários géneros, que arrecadou vários prémios quando chegou a PC no
ano passado e que, segundo vários testemunhos credíveis, nos deixa com a mente
f… lixada? Contem comigo. Mas será Inscryption uma experiência capaz de
alargar os horizontes da nossa mente, ou ficará inscrito na história dos
videojogos como uma desilusão?
Em Inscryption, começamos por
encarnar uma pessoa capturada e presa numa cabana. O nosso captor é uma
criatura misteriosa, perigosa e aparentemente louca chamada Leshy. Este
“apenas” quer que joguemos um estranho jogo de cartas com ele, procurando um
desafio à altura para as suas habilidades – caso não sejamos habilidosos o
suficiente, a penalização é “apenas” perdermos a nossa vida. O jogo de cartas
em si tem regras simples o suficiente. Temos 4 espaços para colocar criaturas,
que podem variar entre roedores básicos sem qualquer capacidade de ataque e
apenas com 1 ponto de vida, e monstros com mãos cheias de pontos de ataque e de
vida que contêm uma ou duas de entre dezenas de habilidades específicas diferentes (voar, regressar
à mão depois de morrer, melhorar as cartas à volta, entre várias outras).
No início do nosso turno, podemos optar
por retirar uma carta de dois baralhos diferentes: um que apenas contém os tais
roedores básicos e outro com monstros mais complexos capazes de atacar e/ou de
utilizar outras habilidades. Colocar monstros complexos na mesa tem quase
sempre um custo, sendo necessário sacrificar outras criaturas ou gastar ossos
que vamos adquirindo sempre que um monstro nosso morre. O objetivo é conseguir
arranjar espaço para atacar diretamente o nosso oponente até este sofrer 6
pontos de dano a mais do que nós. É daqueles casos em que a frase feita de
“fácil de perceber, mas difícil de dominar” assenta que nem uma luva, sendo
divertido experimentar diferentes estratégias até encontrarmos uma fórmula
capaz de nos levar à vitória.
Contudo, essa vitória não é fácil de
alcançar, porque o nosso captor não deixa que o enfrentemos diretamente assim
que nos sentamos à mesa de jogo. Não senhor. Antes de enfrentarmos Leshy temos
de participar no seu distorcido jogo de tabuleiro, escolhendo como queremos
avançar no mesmo até confrontarmos um boss – que mais não é do que uma persona
do nosso captor. Sempre que avançamos no terreno, podemos encontrar novas
cartas, meios sombrios para melhorar ou fundir cartas que já tenhamos, recolher
itens que serão úteis em confrontos, ou entrar em encontros com outras personas menos
exuberantes de Leshy. Se perdermos duas vezes a caminho de um boss (ou apenas
uma vez contra um boss), Leshy determina que não somos dignos de o entreter e
põe fim à nossa vida, capturando a nossa alma e prendendo-a numa nova carta que
construímos e que passa a poder ser encontrada na tentativa seguinte.
Sim, todo este jogo perturbador para o
qual Leshy nos arremessa assume a forma de um rogue-like. Temos sempre
um baralho base que se mantém intacto de cada vez que recomeçamos a demanda
para derrotar o psicopata que nos raptou, mas todas as alterações ao
mesmo (cartas novas ou modificações aplicadas) serão deitadas fora quando
morremos. Sabendo disto, podemos perfeitamente escolher ter runs em que
reunimos cartas poderosas e pouco compatíveis para tentar ir introduzindo cartas
incrivelmente fortes no leque de opções que podemos encontrar. Mas claro que
isto é sempre um risco, já que, como qualquer bom rogue-like, tudo o que
encontramos é aleatório, e podemos perfeitamente chegar até um boss desafiante, ou até ao confronto final
com Leshy sem termos a opção de adicionar estas cartas ao nosso arsenal.
Sendo todo o drama com Leshy um bom rogue-like,
temos também algumas opções para adicionar cartas permanentemente ao nosso baralho.
Para tal, temos apenas de nos levantar da mesa de jogo e, na perspetiva da primeira pessoa, explorar a cabana na
qual somos prisioneiros. Para além de um construtor de baralhos de cartas rogue-like
– uma mistura de géneros que, tanto quanto sei, já é bastante incomum -, Inscryption
acrescenta aqui elementos de resolução de puzzles e de escape rooms. A
cabana está repleta de pequenos desafios e cada resolução dá-nos cartas para
acrescentar permanentemente ao nosso baralho, itens essenciais para derrotar
Leshy e todas as suas personas, ou até pistas de como poderemos derrotar o nosso
captor de uma vez por todas.
Pode parecer complexo ter de prestar
atenção a tudo. Afinal de contas, a resolução dos puzzles está dependente de
encontrarmos pistas subtis, ir avançando no tabuleiro de jogo ou realizando
jogadas muito concretas que afetam o mundo fora do jogo de cartas. Felizmente,
algumas das cartas que pertencem permanentemente ao nosso baralho têm autoconsciência
e vão comunicando connosco. Se passarmos muitas tentativas sem avançar propriamente
na nossa caminhada até Leshy, ou se morrermos várias vezes com um puzzle
essencial por resolver, estas cartas vão dando pistas do que fazer a seguir.
Se forem como eu, já estarão a sentir a
necessidade de uma tradução portuguesa para o termo “mindfuck” – até porque é
uma palavra gira, e estou farto de parecer um snob quando a uso. Mas esperem,
porque há mais! Derrotar Leshy não é o fim de Inscryption, não! Se o
derrotarmos depois de resolver os puzzles essenciais e de recolher um item
importante, desbloqueamos o botão de “novo jogo” no menu principal – uma novidade,
já que a primeira vez que abrimos o jogo somos confrontados apenas com a opção
de o continuar. Derrotar Leshy como deve ser apenas significa o fim do primeiro
ato de Inscryption, e começar um “novo jogo” leva-nos para o início do segundo
ato do jogo.
Mas há mais! O segundo ato muda radicalmente
todo o jogo! O sistema de progressão e recomeço rogue-like vai pela
janela, e passamos a estar num mundo em 2D que se assume mais como um RPG de
construção de baralhos mais puro, com um estilo visual a fazer lembrar a era da
SNES. O objetivo passa a ser derrotar quatro entidades responsáveis pela
criação do próprio jogo de cartas, tendo de explorar o mundo, resolver os
puzzles associados a cada um antes de os enfrentarmos. A ordem pela qual enfrentamos
estas entidades e os seus desafios fica completamente ao nosso critério, e uma
derrota não significa recomeçar tudo, mas apenas que temos de tentar adquirir mais cartas e aperfeiçoar
a construção do nosso baralho. Os próprios jogos de cartas apresentam novas
mecânicas, com a introdução de uma miríade de novas cartas com diferentes
habilidades e diferentes requerimentos para serem colocadas na mesa.
Mas há ainda mais! Derrotar as quatro
entidades leva ao final do segundo ato, e o terceiro volta a mudar bastante a
jogabilidade. Neste, voltamos a um tabuleiro de jogo controlado por uma
entidade que nos mantém cativos. Voltamos também a ter puzzles na primeira
pessoa ao estilo escape room para resolver fora da mesa de jogo, mas o progresso
já não é totalmente reiniciado quando perdemos um jogo. Em vez disso, vamos explorando
vários ecrãs em busca de novas cartas ou benesses para o nosso baralho num
layout a fazer lembrar dungeon crawlers, e caso sejamos derrotados,
somos recambiados para o checkpoint anterior, retendo o nosso baralho tal como
estava. O final deste terceiro ato leva a um desfecho bastante bom para toda uma
narrativa sempre intrigante e que nos vai constantemente rebentando a mente.
Todas as exclamações de “O quê!?” ficam resolvidas, e a ligação de tudo isto
com outros elementos do jogo são mais do que completa e satisfatoriamente
concluídas.
Sim, ainda há mais! Se um misto de construtor
de baralhos de cartas, puzzles, escape rooms, RPGs, rogue-likes e
dungeon crawlers não for o suficiente, ao longo da campanha ainda vamos
sendo brindados com várias intermissões narrativas em FMV. Nestas, podemos
testemunhar vários vídeos de um streamer/influencer dedicado a abrir pacotes de
vários jogos de cartas colecionáveis e da sua descoberta de uma disquete com o
videojogo Inscryption. Estas instâncias acrescentam mais uma camada
narrativa de qualidade que interage incrivelmente bem com toda a história que é
contada nos três atos mais jogáveis deste título.
Inscryption
é, então, uma belíssima história que nos agarra do início ao fim, e que nos vai
constantemente surpreendendo de modo bem pensado, pertinente e coerente. A
jogabilidade é uma louca e arrojada mistura de variadíssimos géneros que, muito
sinceramente, nunca imaginei pudesse funcionar tão bem. Mas meus amigos, funciona
brilhantemente bem! E o que dizer da variação de direções artísticas? Passar do
estilo 3D pixelizado da era PS1, para o estilo em 2D da SNES, para voltar a um
estilo 3D que fica ali entre o final da era PS1 e início da PS2 de forma
coerente não deve ter sido um trabalho nada fácil. Mas os resultados são de
mestre!
Já que puxei de um assunto mais técnico,
não consigo deixar de olhar agora para toda a direção sonora de Inscryption.
As mudanças artísticas de cada ato da narrativa do jogo fazem-se acompanhar de
efeitos sonoros que se coadunam incrivelmente bem com o que vemos. Todos os
efeitos sonoros das cartas que comunicam connosco, de um puzzle bem resolvido, do
sacrificar de uma carta, entre tantas outras coisas… está tudo tão bem
conseguido e tão bem-adaptado à sensação de jogo que cada ato pretende transmitir.
A música talvez não fique tanto na cabeça, mas não posso deixar de considerar
que tudo o que está relacionado com o som do jogo enaltece toda a experiência
com o mesmo.
De resto, Inscryption apresenta um
desempenho bastante consistente, sem qualquer quebra na taxa de fotogramas, sem
qualquer bug e sem tempos de carregamento excessivamente longos. Para mais, é
dos poucos jogos recentes que, numa PlayStation 5, tira bem partido das funcionalidades
do DualSense, dando bastante peso à decisão de sacrificar uma criatura para
colocar outra na mesa com o feedback háptico, ou aumentando a tensão de correr
o risco de melhorar uma carta quando há a possibilidade de esta ser perdida no
processo através dos gatilhos adaptativos.
Com tudo isto, alguns leitores estarão certamente
a pensar que Inscryption está destinado ao panteão dos jogos
independentes, ou eventualmente até dos videojogos em geral. E aquilo que posso
dizer quanto a isso é que… quase que sim. O trabalho da Daniel Mullin Games
bate certamente à porta do Olimpo, talvez até fique a conhecer o vestíbulo, mas
fica a muito pouco de se sentar na mesa dos ilustres. Isto porque o jogo comete
dois pecados significativos que, curiosamente, dizem ambos respeito à
dificuldade da experiência... e se contradizem. Sim, até os problemas do jogo me levam àquela palavra gira em inglês.
Inscryption
apresenta um grau de dificuldade extraordinariamente inconsistente, e, por
vezes, com uma curva de aprendizagem incrivelmente íngreme. Por exemplo, dentro
do primeiro ato o salto da área do segundo boss para a do terceiro é
incrivelmente difícil, mesmo com algumas melhorias muito bem aplicadas e várias
cartas poderosas adicionadas ao baralho. A mudança da jogabilidade introduzida
no terceiro ato faz com que a primeira metade desta secção do jogo seja incrivelmente
mais desafiante que a segunda (ponto a partir do qual um ou dois upgrades
permanentes facilitam muitíssimo a nossa tarefa). Confesso que esta inconsistência
manchou o meu prazer com esta experiência duas ou três vezes, levando-me a optar
por fazer uma pausa do jogo depois de dias em que sentia que estava a
bater contra uma parede – isto apesar de ter uma sede insaciável de saber mais
sobre a história e de ter esta análise para escrever e entregar em tempo útil.
O segundo pecado é completamente oposto
ao que acabei de descrever. Há uma carta em Inscrpytion que torna a
grande maioria do jogo incrivelmente fácil. Quando me apercebi do potencial desta
carta- um momento giro e entusiasmante em si mesmo, devo reconhecer-, a grande maioria do tempo foi passado a procurar encontrá-la para
adicionar ao meu baralho e a desenhar estratégias para a poder colocar na mesa
assim que possível. Isso em si foi divertido, mas confesso que assim que tinha
encontrado essa estratégia, a grande maioria do resto do jogo foi um passeio no
parque. Portanto, entre subidas de dificuldade repentinas e a existência de uma
carta que sozinha pode levar-nos facilmente à vitória, é mesmo de lamentar
tanta inconsistência na dificuldade desta experiência.
Conclusões
Inscryption
é daqueles jogos marcantes, memoráveis e que nos faz desejar haver uma palavra
em português para o termo “mindfuck.” Cada um dos três atos tem algo de único
para oferecer, tanto mecânica como narrativamente, sendo quase sempre um prazer
aprender as novas nuances de jogabilidade que vão sendo postas à nossa frente e
apreciar a criatividade de uma história que aproveita tantas das
potencialidades do meio dos videojogos. Não fossem alguns dos graves problemas
de equilíbrio da dificuldade, e estaríamos aqui a debater este jogo como
estando muitíssimo perto da perfeição. Se são fãs de indies com premissas
únicas e distintas, encontrarão poucos títulos tão apelativos quanto este.
O Melhor:
- Uma narrativa sombria, surpreendente,
envolvente e incrivelmente bem construída
- Uma deliciosa mistura de géneros que não
devia poder funcionar tão bem como funciona
- Diferentes direções artísticas muito bem
conseguidas
- Desempenhos de voz e efeitos sonoros
muitíssimo bem conseguidos
- Implementação das funcionalidades do
DualSense enaltece a experiência
- Jogos de cartas simples de entender, mas
que apresentam desafios divertidos, mas…
O Pior:
- … A dificuldade é extremamente
inconsistente, com aumentos e diminuições súbitas
- Uma carta em particular que rebenta
totalmente com o desafio do jogo
Pontuação
do GameForces – 9.5/10
Título: Inscryption
Desenvolvedora: Daniel
Mullins Games
Publicadora: Devolver
Digital
Ano:
2022
Nota: Esta análise foi realizada
com base na versão digital do jogo para a PlayStation 5, através de um código
gentilmente cedido pela Devolver Digital.
Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
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